Linha de frente: elos entre Bruno Pereira, o SUS e milicianos

No texto de hoje do Blog do Departamento de Psicanálise, nossa colega Mira Wajntal nos ajuda a ouvir o silencioso movimento de ocupação e corrosão de serviços públicos do país, convocando-nos a reagir com a força da presença de nossos corpos. Confiram!

 

LINHA DE FRENTE: ELOS ENTRE BRUNO PEREIRA, O SUS E MILICIANOS

Mira Wajntal


De coração dilacerado, mas com o corpo inteiro, assisto as maiores chacinas do país. Mariele, executada; Bruno e Dom, vítimas da selvageria de uma “terra sem lei”. Sim, há muitas outras vítimas, inúmeras, tantas que nem conseguimos listar. Um verdadeiro horror. Sim, estamos na casa dos 670 MIL mortos oficialmente contabilizados pela Covid! Fora os não contabilizados. Uma tragédia inadmissível! Há e haverá muitas sequelas desse período, na área da saúde e na esfera social e política. Restará muita desolação.

Temos que ir às ruas! É urgente! A pandemia foi para o regime antidemocrático mais eficiente do que o AI-5 para ditadura, nos impedindo de nos juntarmos, colocarmos nossos corpos em cena e resistir. Protegidos pelos modernos recursos de comunicação, que nos mantém em contato com os outros, mas, numa dimensão mais íntima, sem estarmos com ninguém, tiramos nossos corpos de cena. Não estou colocando a era digital como vilã, mas temos que manter uma redobrada atenção sobre o uso que fazemos dos recursos disponíveis. Atenção! Será que participamos, de fato, de alguma resistência apenas pela via virtual?

Bruno foi morto porque estava lá. Seu corpo estava na cena. Deixou filhos muito pequenos órfãos porque estava lá. Sábado, dia 18 de junho, o Sindicato dos Servidores Públicos organizou um ato clamando por justiça e homenageando a memória de Bruno e Dom. Conversando com os servidores da FUNAI, que são Servidores Públicos, concursados e com direito de exercer a função, dei-me conta de que nós, do SUS, temos muito em comum. Eles já são espécies em extinção. Nós, do SUS, espécies em vias de extinção. O nosso extermínio já vem desde o fim do século passado. Naquela ocasião, quando começou a caça aos Servidores Públicos, estavam sendo criados os conselhos tutelares, que fazem parte do estado, mas são geridos por uma lógica, por vezes, muito esquisita. São eleitos pela comunidade, mas quase ninguém sabe de sua eleição, e praticamente ninguém conhece seus candidatos. Mas há comunidades muito bem organizadas, que colocam seus representantes na linha de frente dos conselhos. Têm uma estratégia “colonizadora” muito eficiente e conhecida desde que os Jesuítas chegaram nessas terras – são as ”franquias religiosas”, regidas por líderes não teólogos. Sim! Elas dominam boa parte dos conselhos, agem como estado, regem-se pelos próprios valores e têm uma ação moralista, cujo intuito é tornar as famílias seus rebanhos. Foi a mesma estratégia da pessoa, creio que não concursada, que ocupou a vaga de Bruno Pereira quando ele foi exonerado do cargo que possuía na FUNAI, responsável pelos povos isolados.

O SUS, seguindo a funesta trilha da FUNAI, vem sendo cada vez mais terceirizado por Organizações Sociais, que, na teoria, devem ser reguladas e fiscalizadas pela Administração Pública, consequentemente, por seus servidores em extinção. Não é preciso dizer que, assim como a FUNAI, cujo contingente de recursos e trabalhadores é ínfimo, o SUS, em termos de regulação e fiscalização, está próximo disso.

Estamos diante da extinção dos setores que protegem a vida: saúde, povos originários e floresta. No SUS, a gente sempre diz que quem atua junto à população são os profissionais da linha de frente. Isso mesmo, linha de frente, como na guerra. Nossos corpos sempre ali, na batalha! Corpos mais do que exigidos, cansados, ameaçados e, muitas vezes, mortos. Bruno, presente! Mariele, presente! É redundante dizer quantos de nós morremos na pandemia do SARS-COV 2. É inútil revelar o temor de cada servidor em deixar seus filhos para ir para a linha de frente.

Sim! É muito confortável tirar o corpo de cena. É bem melhor não estar na linha de frente. Mas, ao procedermos assim, estamos entregando o nosso patrimônio mais caro - a própria vida! Mas para que e para quem estamos entregando nossas vidas?

Está mais do que na hora de colocarmos nossos corpos em cena. Está mais do que na hora de retomarmos nossa função social e a condução da vida, da justiça, dos povos originários e da floresta. Do contrário, estamos imersos na pretensa comodidade dessa profunda inação, somente assistindo de camarote a deterioração do meio-ambiente, da cultura e da vida.

Mira Wajntal é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro do GTEP, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP e servidora pública concursada por 30 anos. 

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