Tempos de luto. Tempos de luta
Num momento político
tão importante no mundo e, sobretudo no nosso país, o texto "Tempos
de luto. Tempos de luta", escrito pela nossa colunista M. Laurinda R. de Souza, nos traz algum
alento, alguma esperança ao apontar os destinos possíveis do trabalho do luto.
Aproveitem a leitura!
TEMPOS
DE LUTO. TEMPOS DE LUTA
Ao
iniciar este texto, marquei a data:
2020. Hesitei. Em que ano estamos? 2020/2022? Hesitação tão
significativa que imagino possa ter acontecido com vocês também. Efeito da
pandemia? Efeito também do desejo? De que este tempo não tivesse ocorrido.
Efeito
perturbador por revelar a sequela das experiências traumáticas destes dois
anos. Anos em que registramos um aumento significativo do sofrimento psíquico
com queixas de cansaço, perturbações do sono, ansiedade, problemas de memória,
depressões, perda da noção de tempo e espaço, aumento da violência doméstica,
aumento do uso de álcool e outras drogas, desemprego, fome. Efeitos da pandemia
e muito também de um entorno violento e nada hospitaleiro. Entorno que nos
produz desassossego, indignação e revolta.
O
que é possível fazer?
Na
década de 70, anos também assustadores, Madre Cristina, figura tão importante
de nossa história institucional, tinha em sua sala uma gaiola com um pássaro
dentro. No entanto, ao contrário do esperado, a porta da gaiola ficava aberta.
Perguntei-lhe, afetuosamente, por que a porta aberta? Ela, com prontidão, me
respondeu: quando se fica muito tempo preso, não se sabe mais voar.
Depois
de tanto tempo isolados, saberemos voar? Depois de tanto tempo submetidos ao
horror deste governo saberemos reconstruir o que perdemos?
Meu
desejo é que o espírito dos Goliardos, esse espírito destemido e de potência
nos acompanhe na construção possível de uma outra realidade Que esse espírito
nos acompanhe, também, como lenitivo à melancolia e desesperança, provocadas
pelas imagens e notícias que povoam cotidianamente o nosso mundo, e nos colocam
face a face com o terror e a morte.
Em
1980, André Green, publicou um texto que se tornou referência em Psicanálise: A
mãe morta. Nele, afirmava que a diferença entre as análises atuais e as de
outros tempos estava localizada nas questões do luto. A figura da “mãe morta”,
podendo ser deslocada para uma série de outros objetos amados e perdidos, reais
ou irreais, como já demonstrara Freud em Luto e Melancolia. O atual
referia-se àquela época em que foi escrito o texto, mas pode facilmente ser
transportado para os afetos que vivemos hoje. Vivemos tempos de luto!
Lutos
advindos das mortes por Covid – hoje próximas de 700.000
Lutos
pelos ataques aos ideais de um país que vislumbrava e experimentava conquistas
nos direitos humanos e no desenvolvimento da cultura e das artes, da educação,
da justiça e da democracia.
Lutos
pelas mortes e atos violentos decorrentes do Racismo, da xenofobia, da
misoginia, dos que ousam manifestar sua diversidade sexual.
Luto
pelo genocídio indígena e pela ocupação de suas terras. Nesta semana, no dia
25/4, o estupro e morte de uma menina yanomami de 12 anos por um grupo de
garimpeiros, tornou-se mais uma imagem do horror desse genocídio.
Lutos
pela visão assustadora de corpos no chão, cidades demolidas, efeitos das
guerras intermináveis, e, agora, mal o mundo vislumbra uma diminuição da
pandemia, a guerra entre Rússia e Ucrânia.
Não
é possível permanecer indiferente a essas tragédias e violências, a menos que o
cinismo, a perversão e a hipocrisia nos blinde os olhos e a consciência.
Não
vou aqui retomar palavras que nos causam indignação, constantemente enunciadas
por quem teria o dever de solidariedade, mas que, ao contrário, minimiza os
efeitos desses lutos e nega com sarcasmo as violências sofridas.
Vou,
antes, partilhar com vocês, um conto de Tchekhov que reli recentemente e que
trata do vazio provocado pela ausência da solidariedade diante de uma dor que
nos angustia. O conto chama-se, justamente, Angústia. Foi escrito em 1886 e tem como epígrafe, uma pergunta: A quem
confiarei a minha dor?
É
preciso lembrar que na década de 1880 a Rússia era um enorme império. Mais de
80% da população vivia no campo, subordinada aos senhores feudais. O incipiente
início industrial levou um grande contingente de trabalhadores para as cidades
que ficaram, também, submetidos a péssimas condições de trabalho. O conto de
Tchekhov inscreve-se nesse clima de pobreza e revolta.
Trata-se
da história de um cocheiro, Iona Potapov, que sob a neve, permanece com seu
trenó e seu cavalo, num lugar central da cidade barulhenta e apressada, à
espera de passageiros que lhe paguem pela subsistência. Carrega consigo uma
dor. Perdeu o filho e não consegue encontrar quem possa escutá-lo.
“Não
haverá, entre essas milhares de pessoas, ao menos uma que possa me ouvir?”
Tem
fome de palavras que o aliviem da angústia que o atravessa e transborda. Ao
final, Tchekhov nos diz que o cavalo, ao ouvir as palavras do velho cocheiro,
sopra nas mãos de seu dono. Este, então, lhe conta a história desse filho que
acabara de morrer.
O
lamento de quem vive hoje a tragédia das mortes, da invasão de suas terras, da
quebra das barragens, da lama que invade as terras, as casas, os vales e rios,
das enchentes provocadas por catástrofes climáticas, pede, como Iona Potapov,
que essas histórias sejam reconhecidas. Que algo seja possível fazer para que
essas mortes e tragédias sejam evitadas.
E,
pedimos todos: que haja punição aos responsáveis por elas.
Ouçamos
um desses lamentos. Ele nos chega pela voz de uma jovem-menina que viveu a
tragédia-crime de Brumadinho. Tragédia ocorrida há 1.194 dias.
“Quando
a lama chegou, não houve tempo. Minha mãe tentou salvar os poucos móveis da
casa desmoronada. Meu pai arrastou o berço com minha irmã pequena. A lama
cobriu tudo.
Perguntei:
mãe, cadê João?, cadê Pedro?, cadê tia Zeferina?, cadê tio Zeca?
Às
perguntas pelos ausentes não houve respostas. Vieram depois quando os corpos
foram encontrados. Alguns nunca o foram. Ficaram ali. Tiveram enterro de barro.
“Menina,
diz-lhe a mãe, não pergunta mais. Eles estão lá nas covas do deslizamento. Eu,
estou aqui à espera da minha que também será coberta pelo barro”.
M. Laurinda R. Sousa é membro do Departamento de psicanálise, psicanalista e escritora. É colunista do Blog do Departamento.
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