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quinta-feira, 8 de setembro de 2022

O coração embalsamado e o movimento negro: relato do lançamento do documentário “Afirmando a vida”

De forma poética e sensível, Miriam Chnaiderman, essa cineasta da diferença, descreve o importante debate sobre seu último Documentário – Afirmando a vida - ocorrido no dia 30 de agosto no Sesc Pinheiros, com a presença de Ana Lúcia Silva Souza, Deivison Mendes Faustino e Fabiano Maranhão. Não percam. 

 

O CORAÇÃO EMBALSAMADO E O MOVIMENTO NEGRO: RELATO DO LANÇAMENTO DO DOCUMENTÁRIO “AFIRMANDO A VIDA”

Miriam Chnaiderman

Um coração embalsamado em formol” ... é essa a resposta que Ana Lúcia Silva Souza dá à pergunta que Fabiano Maranhão fizera: “O que os negros têm a comemorar nesse duplo centenário da Independência?” Resposta contundente e amarga. E verdadeira.  Essa pergunta encerrava o debate que aconteceu após a exibição do documentário “Afirmando a vida”, que dirigi. Era o lançamento presencial, que aconteceu no SESC Pinheiros no dia 30 de agosto. Uma terça-feira gelada que não impediu que as pessoas interessadas e militantes comparecessem para assistir e debater. Uma plateia não cheia, mas com pessoas realmente comprometidas.

Ana Lúcia tem participação no documentário. Uma participação lúcida e apaixonada.  E foi esse o tom que adotou em todas as suas falas nesse debate.  Deivison Mendes Faustino, que também participara do documentário com um depoimento tocante lá estava também. Chegara ao Sesc acompanhado de seu filhinho lindo e sua mulher.   Fabiano Maranhão era o representante do Sesc, pois afinal é responsável pelas ações afirmativas nessa instituição tão enorme e reconhecida.  E nessa mesa, entre três negros, lá estava eu como diretora do documentário. Eu, branca, ruiva, de família judia... 

Ao chegarmos ao SESC Pinheiros, subindo ao auditório do terceiro andar, éramos recebidos com um lanche cuidadoso, sanduichinhos, frutas, sucos. Para recepcionar-nos, lá estavam Fabiano Maranhão e Anete Abramowicz, outra judia branca, responsável pelo projeto “Transnacionalismo e proposta curricular”, financiado pelo CNPq e que me chamou para realizar um documentário militante, que mostrasse o que vem sendo as cotas para negros/as, indígenas e quilombolas e como precisam continuar existindo. As cotas deveriam ser prorrogadas pelo congresso nesse ano, quando a lei 12.711/2012 fez dez anos desde sua implementação.

Naquela recepção tão cuidadosa fomos falando de como organizaríamos o debate. Logo chegou Ana Lúcia, coloridíssima com seus dreads e por fim Deivison, figura doce e forte. Ficamos sabendo que o nome de seu filhinho é Zuhri, que quer dizer “bom olhar”. O Bom Olhar se esparrama, quer brincar, não para... é uma criança muito viva e doce. Numa relação de muita ternura com o pai e a mãe. Que os bons olhares possam nos fortalecer!

Fomos para o auditório. Vi, pela primeira vez “Afirmando a vida” em uma tela grande. Isso comove muito. Qualquer diretor, seja de documentário seja de ficção, tem uma grande emoção ao assistir pela primeira vez seu filme em tela grande. Chorei... foi um filme feito na paixão, com pouquíssimos recursos. Usei material filmado desde 2007 e filmei o 20 de novembro de 2021 na Av. Paulista. Os depoimentos comovem e a montagem resgata todo um percurso dessa luta.

Ao final, os aplausos me comovem... é como se eu tivesse realizado um grande passe de mágica... Sempre me surpreende o que um filme pode provocar.

Fabiano toma o microfone e pede que as pessoas falem de como o filme as impactaram. Eu falo de como sempre que um filme que dirigi é exibido, eu emudeço, pois sempre é mais importante o que as pessoas têm a dizer. As falas do público vão pingando... um agradecimento e o resgate de histórias que aconteceram desde os anos 90... no século passado... Essa luta vem de longe...  O reencontro de pares lutadores, vanguardas do que hoje acontece... O “Afirmando a vida” propiciando encontros e cumplicidades...

Depois, encaminhamo-nos para nossos lugares de debatedores/as com microfones e de frente para o público. Ana Lúcia fala primeiro e depois Deivison. Os dois agradecem ao movimento negro, os dois relacionam a militância com o hip-hop. A politização de Deividson aconteceu por meio do hip-hop. Ana Lúcia hoje é professora da Universidade Federal da Bahia, a UFBa. Mas, fala de como ainda são poucos/as os/as professores/os negros/as, de como é solitário tudo que vive. Deivison é professor na UNESP. Está ministrando um seminário em nosso curso durante esse semestre. Vem divulgando Fanon. Levou seu livro recém-lançado “Frantz Fanon e as encruzilhadas” para presentear algumas pessoas. Ganhei um livro autografado! Presente precioso e único.

Quando falei, contei da minha história, desde 2004, fazendo filmes sobre a questão racial quando o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UFSCar me chamou para fazer dois documentários para um curso de formação sobre o racismo em sala de aula que ministrariam para professores da rede pública Paulista. Em 2006 e 2007 filmei pelo Brasil as universidades federais que haviam adotado o sistema de cotas.

Quando relato tudo isso, falo de como, muitas vezes, foi difícil ser uma cineasta branca fazendo filmes sobre o racismo contra o negro. Foi quando Ana Lúcia falou das muitas cineastas negras que filmam lindamente com seus celulares, mas que não conseguem verba para finalizar e exibir em cinemas aquilo que fazem. E me diz que essas cineastas hoje querem a caneta, querem ter acesso a verbas... Mais uma vez era como se a minha branquitude me propiciasse algo a que outrxs não teriam acesso...  e talvez seja assim mesmo... Mas, ao mesmo tempo falou de como a questão da branquitude também é algo que deve ser trabalhado e o quanto ao fazer esses filmes, é a minha branquitude que é trabalhada. Nesse momento Anete Abramowicz fala do judaísmo, que também tem uma história de violência, de racialização. Mas, que lidou de forma radicalmente diferente com a questão racial, mostrando da radicalidade do pensamento negro. E me define como uma cineasta da diferença...  O que me deixa feliz...

Deivison conta que aceitou participar do filme porque ficou interessado em ver como uma branca lidaria com a questão das cotas. Achou importante e rico. E os dois concluíram o quanto o meu filmar era exemplo de uma ação antirracista. Fiquei orgulhosa. Coerente com princípios que sempre me nortearam...

E, no final, a pergunta de Fabiano e o coração de D.Pedro II  embalsamado como o que simbolizaria o que somos e fomos.... Pedaço morto, inerte, de um passado gélido. Mais uma vez, a negação do sangue derramado, da luta, da injustiça.

Aprendi com Petronilha Beatriz Gonçalves Silva que o recalcado do Brasil é seu passado africano. Passado de desumanização do negro em dores atrozes. Petronilha deu o parecer 03 em 2003 que modificou a lei de diretrizes e bases e tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira por meio da Lei 10.639/2003.

Sabemos que o recalcado sempre retorna como violência. Haja vista o que se passou nas eleições passadas: a não punição dos torturadores elegeu Bolsonaro. Como disse Julian Fuks em texto publicado na UOL, é preciso um terrorista que tenha horror a qualquer violência para resgatar o coração pulsante, contra o embalsamamento da vida. Afirma Julian em seu potente texto: “Precisa-se de um terrorista com a máxima aversão ao sangue e à dor alheia, crítico ferrenho da impiedade e da indiferença”. Por causa desse seu ensaio publicado no dia 17 de agosto Julian e seus familiares todos foram ameaçados de morte. Quando o texto é um libelo pela não violência diante do desrespeito e humilhação a que esse governo nos condena.

A partir da pergunta sobre os negros e a comemoração do duplo centenário da Independência do Brasil só nos resta falar do coração embalsamado em formol.  Como disse Ana Lúcia... Triste metáfora de uma violência sem tamanho.

Miriam Chnaiderman é psicanalista e cineasta. É membro e professora do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae. 

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