René Roussillon: novos e velhos paradigmas da Psicanálise

Nossa colega Camila Junqueira tece reflexões sobre o encontro virtual com René Roussillon, organizado pelo Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) em 17/09, lembrando-nos sobre a importância do pensamento deste psicanalista contemporâneo. Camila nos recorda também do evento online "O Lugar do Corpo nas Patologias Narcísicas com René Roussillon", organizado pelo Departamento de Psicanálise, que acontecerá em 08/10/22

 

RENÉ ROUSSILLON: NOVOS E VELHOS PARADIGMAS DA PSICANÁLISE

No dia 17 de setembro, René Roussillon, professor da Universidade Lumière Lyon 2, que se dedica há mais de 40 anos aos estudos dos sofrimentos narcísicos-identitários em diversos contextos clínicos, fez uma palestra intitulada Rumo a novos paradigmas para o pensamento e a prática psicanalítica, a convite do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP). Acompanhar seu pensamento é sempre uma experiência gratificante. Partilhamos de preocupações semelhantes no que tange a teoria e a clínica de pacientes-limite, ou narcísico-identitários como ele prefere, e escutá-lo ecoar e endossar certas ideias me ofereceram imenso conforto naquela manhã fria de fim de inverno.

Ao propor uma reflexão sobre os novos paradigmas da psicanálise, Rene Roussillon pensa que o primeiro passo é a articulação desses novos paradigmas com os antigos, pois manter Freud como eixo central nos permite “dar coerência à psicanálise e diminuir o aspecto babilônico desta teoria enunciada por diversas vozes”. Em minha tese de doutorado, defendida em 2010 e publicada mais recentemente, Metapsicologia dos Limites (Blucher, 2019), desenvolvi a ideia de que a criação uma metapsicologia que sustentasse a clínica de pacientes-limite não passava pela ampliação de modelos, mas pela articulação de modelos já existentes: a teoria pulsional de Freud e a teoria das relações de objeto. Neste trabalho fiz um estudo aprofundado das tensões, dos limites e das possibilidades dessa articulação, tomando André Green como um importante interlocutor. A discussão sobre a possibilidade de construção de uma psicanálise unificada é bastante ampla. No final da década de 90, Green, Kernberg e Wallestein (Bergmann, 1997) promoveram uma discussão acalorada sobre as possibilidades de encontramos um “common ground” para a Psicanálise. Em 2005, Luís Claudio Figueiredo propôs que finalmente teríamos chegado a uma ‘era pós-escolas’, no entanto não é isso que se observa nos grupos de formação em psicanálise, que ainda tratam seus autores preferidos como detentores da verdadeira Psicanálise. Como já bem apontaram Mitchel e Black (1995) “Linguagem nova é às vezes inventada para propagar ideias antigas, pois assim diferenças podem ser exageradas para a reivindicação de originalidade. Linguagem antiga é às vezes esticada para propagar novas ideias, pois assim similaridades podem ser exageradas para a reivindicação de continuidade” (p.xxi), o que ainda parece ser uma realidade hoje. Nesse contexto, entendo que a proposta de Roussillon de amarrar novos paradigmas aos velhos não se traduz em um ‘recurso ao mestre’ para validação de um pensamento, mas se assenta numa compreensão de que precisamos de muitas vozes para construir uma metapsicologia, que dê conta dos múltiplos sofrimentos que encontramos na atualidade. E, nesse sentido, a articulação entre os diversos paradigmas tem uma função central de dar coerência à Psicanálise e não exigir que um só autor seja o único de ‘dar a letra’ na Psicanálise.

Seguindo em sua fala, Roussillon entende que um novo paradigma se colocou para a psicanálise quando os sofrimentos encontram o limite da representação, quando não há palavras para expressar certos tipos de traumatismo e precisamos observar o corpo e o comportamento dos pacientes. Ele enuncia: “Pacientes que vivem colapsos têm muita dificuldade de formular verbalmente seu vivido, mas seus corpos irão expressar o colapso”. Dessa forma, Roussillon sugere que devemos prestar atenção na associatividade não-verbal. Aqui propriamente não há uma mudança de paradigma, pois o que vale é a regra fundamental da análise: a associação livre, e a ideia de que a associação livre permanece como importante via regia para o inconsciente, mas trata-se de captar a associatividade não-verbal. A propósito, para Roussillon isso já estava em Freud em Construções em Análise (1939) quando fala do retorno “quase alucinatório” daquilo que é vivido antes da aquisição da linguagem verbal. A mudança de paradigma está na importância dada ao outro na construção do aparelho simbólico que permitiria a expressão simbólica e verbal do vivido - mas que falha em pacientes com sofrimentos narcísicos e, portanto, tal construção passa a ser o eixo da clínica com esses pacientes.

Roussillon procura examinar em sua fala, detalhadamente, como este novo paradigma se articula com a metapsicologia freudiana. Em geral, dividimos a metapsicologia freudiana em duas tópicas, localizando a virada em 1920 com a introdução da pulsão de morte a partir do texto do Mais Além do Princípio do Prazer, e tendo como auge a formulação da segunda tópica em 1923, com a publicação do Ego e o Id. Roussillon, no entanto, discorda dessa sistematização, seja porque as mudanças não se restringem à tópica, seja porque a virada não se localiza, a seu ver, em 1920. Roussillon aponta então que, desde 1914, com o texto A Introdução ao Narcisismo, em que Freud começa a desenvolver o conceito de Eu, texto em que deixa de falar em pulsões orais ou anais, e passa a falar em formas orais e anais do Eu organizar a pulsão – o que faz muita diferença para Roussillon. Já podemos subentender aí uma mudança de paradigma, pois a passagem do narcisismo primário ao secundário não se faz sem a presença de um outro. Em Luto e Melancolia, de 1917, já estaria claro para Freud de que sua primeira metapsicologia, ligada ao sonho e ao recalque, não dava conta de todos os fenômenos clínicos, e que o luto do objeto primário, que encaminha o sujeito para uma organização neurótica não pode ser dado por certo, pois há patologias, como as melancolias, que se explicam pela dificuldade de enlutar o objeto, e, pela consequente dificuldade da constituição do Eu. Roussillon ressalta que Freud menciona no texto que na melancolia encontramos um objeto decepcionante, não se trata o objeto frustrante, daquele que se ausenta e apresenta a falta, introduzindo o sujeito na castração. Um objeto decepcionante fala da qualidade da presença do objeto, e é isso que está em questão nas patologias narcísico-identitárias.

A questão da qualidade da presença do outro é amplamente desenvolvida por Winnicott, mas segundo Roussillon, encontra seu embrião em Freud desde Introdução ao narcisismo (1914). Roussillon destaca então que “não podemos pensar os impasses e paradoxos do narcisismo com uma teoria narcísica do sujeito... eu me sinto bem e tenho consciência dos limites do meu Eu, se eu fui bem sentido e bem-visto por um outro”. Em consequência disso, para tratar os sofrimentos narcísicos precisamos desconstruir no narcisismo primário, para dar lugar ao narcisismo secundário, ao nascimento do Eu. Desse modo, em termos clínicos, Roussillon centra a mudança de paradigma numa mudança de posição subjetiva na relação analítica, que poderá acontecer na medida em que o analista puder oferecer ao paciente uma experiência de ser ‘bem-visto’.

No entanto, ainda sobre o fazer clínico, Roussillon propõe que não basta devolver ao paciente uma outra imagem de si através da experiência analítica, pois uma imagem não elimina a outra. É igualmente importante apresentar ao paciente os impasses entre essas imagens. É necessário explorar ‘quem’ é esse que fala no paciente, ‘de onde’ fala esse que produziu essa imagem, esse seria o caminho para a desidealização desses objetos primários que produziram identificações perturbadoras. O paciente precisa ampliar sua capacidade de crítica, e nesse percurso Roussillon se arrisca dizendo que o analista pode se colocar e dizer para seu paciente cujo trauma primário não está inscrito em palavras: “no seu lugar eu teria me sentido de tal forma...” E poderíamos pensar: ué, mas isso não é sugestão? Talvez... porém Roussillon já explicitou sua visão sobre esse tema em outra fala dizendo que “é preciso a sugestão para sair da sugestão”. Essa fala de Roussillon foi comentada por mim em outro texto para este Blog: https://deptodepsicanalise.blogspot.com/2021/10/onde-estava-o-isso-o-eu-deve-advir.html?fbclid=IwAR31rUg9kb_yhn1erkqGRGyR6tfu90zQxYL_zuMfr1dlGqfL5iBLCrzCQyo&m=1. Em termos clínicos Roussillon faz eco com a ideia que apresento no meu livro, de que para os pacientes-limite o analista necessita ocupar o lugar de suplência de objeto primário, constituindo uma clínica ‘per via de porre’ (Junqueira, 2019).

As apresentações de Roussillon são sempre muito ricas, e essa transcendeu em muito esse breve comentário. Por essa razão recomendo, fortemente que se assista sua próxima apresentação, organizada por este Departamento, que ocorrerá no dia 8 de outubro. Nela Roussillon irá falar sobre o “Lugar do Corpo nas Patologias Narcísicas”, e na sequência, participará de uma discussão (apenas com os membros do Departamento e aspirantes) sobre seu texto ‘A desconstrução do Narcisismo Primário,” eixo central da clínica desses pacientes diante dos quais é necessário escutar e narrar o corpo. As inscrições podem ser feitas no link: https://sedes.org.br/site/eventos/codigo-9078/

Camila Junqueira é psicanalista, pós-doutora pela USP, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes, coordenadora do curso de extensão de Problemáticas Alimentares nesse mesmo instituto, autora de livros, capítulos e artigos publicados em periódicos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um rubi no centro da tela

Gaza como Metáfora

Destraumatizar: pela paz, contra o terror