Mundo Indígena: o que vive em nós

Ontem choveu no futuro. A poesia de Manoel de Barros fornece uma bela condensação para retratar o relato de nossa colega Eva Wongtschowski sobre o evento Mundo Indígena: o que vive em nós, ocorrido em junho deste ano. O passado no presente assentando um futuro, um presente que organiza passado e possiblidades de futuro, um futuro que construímos no presente com o que fazemos de nosso passado. No a posteriori da elaboração, o texto de Eva nos impacta com as potentes reflexões que circularam no evento. Boa leitura no Blog!

 

MUNDO INDÍGENA: O QUE VIVE EM NÓS

O evento, realizado em 25 de Junho de 2022, com abertura de Fátima Vicente e Gisela Haddad, contou com a participação de: Lucila Gonçalves, psicóloga e psicanalista mediando a mesa; Juliana Rosalen, antropóloga; Renata Tupinambá, jornalista, produtora, artista visual; e Luiz Bolognesi, cineasta (Ex-Pajé, A Última Floresta, entre outros).

Vale lembrar que o Grupo Debates da Revista Percurso, organizador do encontro, publicou na sua seção Percurso 66, de junho/2021, textos de vários autores examinando o tema. Lucila e Juliana compareceram duplamente – na seção Debates e no evento.

Fátima, na abertura, dada a tragédia instituída contra o universo dos indígenas brasileiros (que se estende a todos nós), reforça a importância em mantermos a sensibilidade. Não está em jogo apenas evitar o apagamento de parte de nossa história como civilização, mas de alertar sobre a violência praticada desde 1500 e que se veste a cada tempo de diferentes métodos, inescrupulosos, diante das características da organização social e política dos primeiros habitantes do Brasil. Não é demais recordar que fomos 20 milhões, vivendo durante quatro mil anos antes da chegada dos europeus; agora 2/3 do bioma foi inviabilizado (pela incapacidade do branco em mantê-los) – um número abissal de mortes para além do consequente sofrimento.

O evento vai indicando o trabalho e esforço envolvidos nas mais diversas práticas, não só de brancos ativistas, mas dos próprios indígenas que, tendo conquistado o manejo dos meios de comunicação, estão respondendo pela preservação da história e manutenção da sua visão de mundo e modo de vida. A ignorância que ainda envolve nossa história é inimaginável. Ouço num programa de rádio, por ocasião das comemorações da Independência de Portugal, a frase dita por um general cinco estrelas: “o Brasil mantém um único idioma em todo território nacional”. Ora, atualmente temos 160 línguas e dialetos além do português. Antes da chegada dos portugueses esse número era próximo de 1000!

A jornalista Renata se refere ao Dicionário da Língua Geral Amazônica, ao afirmar que cultura, saúde e identidade se entrelaçam. A civilização indígena mantém filosofias, determinadas cosmopolíticas, e seu próprio espaço de pensamento: homem e natureza não se dividem. Conforme Renata, não há uma única cultura, mas múltiplas, divididas entre diferentes civilizações. Há mais de 7000 páginas escritas sobre a violência contra os indígenas no período da ditadura, e cabe lembrar que escolas dirigidas por missionários católicos proibiam o uso do idioma próprio, proibição mantida por risco de castigo físico. O que os colonizadores, que vieram do exterior, e os brancos brasileiros, leem como infantil, reflete um modo de ser no mundo, uma ciência do viver. Os indígenas, hoje no Brasil, estão em todos os lugares (geográficos, profissionais) contribuindo para que o “céu se mantenha suspenso”.  Seu currículo é um exemplo disso: jornalista, Renata fundou a produtora indígena Originárias Produções e o Podcast Originárias, poeta, consultora, roteirista, artista visual; é membro do projeto Levanta Zambalê, cofundadora da Rádio Yandê, primeira web rádio indígena brasileira; colabora com a transmídia Visibilidade Indígena; e conclui que a cultura indígena tem seus segredos e que nem tudo pode ser compartilhado.

Ao contrário de Renata, Luiz se expressa com fala rápida, apressada, como que pressionado pela urgência ditada pelas circunstâncias sombrias envolvendo a população indígena. Formado em antropologia, estudioso dos mitos, é cineasta envolvido, com toda sua alma, na preservação da cultura e da vida dos indígenas. Conviveu com os pataxós (entre os quais exerceu a função de professor), guaranis e kaiowás. Invertendo o senso comum, como do nosso general, propõe uma revolução de conhecimento apoiado nos saberes ancestrais entre os quais a organização política. Como bem coloca Luiz, não há entre nossos indígenas formação de Estado, e mais que isso, vigoram diferentes dispositivos, democráticos, que impedem a verticalização ou centralização do poder: “a força circula”, tal qual a liderança. Não há privilégios. Há uma confusão entre “falta” de estado e um suposto primitivismo. O mesmo em relação à escrita: a história, os costumes, são mantidos vivos, todo o tempo, pela oralidade. Do ponto de vista da cultura indígena, a memória morre quando impressa na árvore morta em forma de papel.

 A chegada dos missionários cristãos devassa sua identidade cultural, apesar da resistência dos pajés e xamãs; muitos foram mortos e queimados em nome de um deus que evoca “coisas do demônio” para justificar sua ação.

Luiz vai indicando, sem meias palavras, onde chegamos em nome do “logos europeu, do monopólio da “razão”, em detrimento dos “mitos”: o “Chernobyl” e o “holocausto” brasileiros. O primeiro, indicado pelo derramamento do mercúrio (usado na mineração irregular) que infesta corpos humanos, água dos rios, solo. O segundo, indicado pelo número de indígenas mortos desde a chegada dos europeus em 1500 – número que ultrapassa outros genocídios denominados de holocausto. Tanto um como outro, não devidamente contabilizados e assim invisiibilizados. Retoma os casos de suicídio entre os indígenas na região do Mato Grosso do Sul que alcançam, relativamente, o maior índice do planeta! As causas são múltiplas, e entre estas destacam-se a desterritorialização de seus “tekoha” e a inserção econômica marginal. Afirma, com convicção, que o futuro é indígena. Luiz recorda-se de uma conversa com Kopenawa em que este ia se perguntando como estaria a fertilidade dos peixes, se as onças estariam tendo seus filhotes, se as abelhas teriam espalhando suas colmeias, se os brotos romperam. As previsões climáticas justificam as perguntas: por quanto tempo teremos o que comer?

Juliana, além de antropóloga, se identifica como indianista “implicada”: vive entre os Wajäpi há 24 anos. Uma das suas áreas de estudo e atuação é a “construção das pessoas”, e tomando como referência o título do evento inspira-se nas concepções dos Wajäpi sobre o ser. O corpo humano, bem como todo ser vivo, não está limitado ao seu invólucro, mas mantém movimentos de contração e expansão. A antropóloga Juliana relata a “expansão” do corpo de um caçador que, não tendo visto pegadas, nem sentido o cheiro de caça, “sente” que há caça, mas atrás dele, faz meia volta e depois de caminhar um tanto a encontra. Surpreendi-me com a história: dias antes ouvi de um rabino a observação de que o passado está diante de nós, podemos vê-lo, é conhecido. O futuro está atrás... Os encontros podem se dar antes de acontecerem, e talvez, diz Juliana, movidos pelo desejo. Homens, animais têm formas peculiares de existirem, e é possível experimentá-los de modo controlado ou, ao contrário, ser capturado por eles. Jovens decidem ir para a cidade: pergunta-se o quanto serão seduzidos, ou poderão, no contato com mercadorias, com dinheiro, manter o controle na experimentação. Sabe-se que ingerir em excesso um determinado alimento provoca uma transformação interna, um outro modo de existir. Estas formas de experimentação podem se desdobrar em “capturas” (descontrole), o que Juliana denomina de “estados alterados”. Estes são passíveis de serem revertidos com métodos de cura próprios realizados pelo pajé. Psicotrópicos, remédios “controlados”, só controlam, mas não resolvem. As experimentações – relações, encontros – deixam marcas e vão compondo a existência. A delicadeza do ponto está em: até quanto, até onde, cada experimentação é possível de ser “controlada”. Também é parte da cosmovisão dos indígenas a busca, o protagonismo nas experimentações. Juliana lembra que esse processo de “captura” está presente em todas as civilizações: os indígenas têm muito claro como os brancos são “capturados” e como resultam em mazelas. É preciso concordar, porque não são poucas.

No chat com muitas perguntas e comentários, os temas foram retomados e desenvolvidos.  Encantados, a conexão com a natureza. Preconceito, intolerância religiosa, o temor constante de agressão. Ameaças. A tragédia do celular, ansiedade epidêmica.  Prostituição, tráfico. Relação com o sonho, o diálogo com o visível e o invisível, os rezos, organização de “espaços de saberes” com o propósito de fortalecer o território e a cultura indígena. Contemplação e pensamento, a urgência em escutar os indígenas Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Geny Núñes.

Ia ouvindo a Renata, Luiz e Juliana falando e me encolhendo na cadeira: arrombam a casa do meu vizinho, saqueiam seus bens, e depois o matam. E eu aqui lendo notícias sobre as mulheres do Iran, o desgelo na Antártica.... Confesso que fiquei envergonhada. A queixa das comunidades indígenas de isolamento, da falta de repercussão de seus apelos se justifica. Nossos olhos e ouvidos estão embotados: é alerta da Juliana. Estarei cega e surda como nosso general?

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