Uma questão de memória

M. Laurinda escreve um lindo texto-poema sobre os 50 anos do golpe militar que interrompia o governo de Allende no Chile. Confiram!

 

UMA QUESTÃO DE MEMÓRIA

Preâmbulo:

Há 50 anos, em 11/09/1973, a democracia chilena foi violentamente interrompida pelo golpe militar, surpreendendo cerca de um milhão de pessoas e as forças ligadas à Unidade Popular que, uma semana antes, haviam manifestado o apoio ao governo socialista de Salvador Allende, reunindo-se em volta do Palácio de La Moneda. O ataque, comandado pelo general Augusto Pinochet, sitiou e bombardeou o Palácio e Allende, que se recusou a sair do país e aceitar as ofertas de asilo, suicidou-se durante a invasão. O silêncio provocado pelo toque de recolher, determinado logo após o golpe, só foi interrompido pelos tiros e tanques na rua. Doze dias depois, morreu Pablo Neruda. Seu enterro se tornou a primeira manifestação de protesto contra a ditadura militar. No discurso do Nobel, em 1971, concluíra seu discurso dizendo: apenas com paciência ardente conquistaremos a cidade esplêndida que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens. Os acontecimentos de setembro de 1973 interromperam esse sonho utópico.

O texto que se segue é uma ficção imaginada a partir dessa realidade.

 

Filetes de sangue. Fragmentos da memória

Chile. Setembro de 1973. Tanques tomam conta das ruas. Estádio Nacional cercado por militares armados. Dos carros policiais descem jovens algemados. São conduzidos ao subsolo. Não muito distante dali um grupo tenta se desfazer de papéis e livros. Maria vasculha gavetas e retira fotos e documentos. Juan abre a porta gritando. É preciso sair. Não se pode mais ficar.

No rosto um filete de sangue.

Chile. Setembro de 1973. Maria procura fotos e documentos. Sabe que não terá tempo. Juan estava perto do Estádio. Olha para os companheiros. Dolores, Santiago, Martina. Desde o mês passado não tem notícias de Mateo. Constanza organiza a mochila. Juan chega gritando. A polícia está vindo.

No rosto um filete de sangue.

Chile. Setembro de 1973. Constanza quer sair. Sabe ser loucura continuar. Não quer o destino de Mateo. Organiza a mochila. Água. Bolachas. A arma enrolada na camiseta. Juan chega gritando.

No rosto um filete de sangue.

Dolores. Santiago. Martina. Mateo. Constanza.

Nos corpos, deixados na rua, filetes de sangue.

Juan e Maria seguiram destino traçado. Terra do fogo. Fim do mundo. Se houvesse mais terra e matas teriam continuado. Pararam no povoado despovoado. Cabo de Hornos. Sabiam ter sido ali que se tentou, séculos antes, um novo caminho.

Fileira pequena de casas. Uma delas abandonada. Janelas quebradas. Um carro sem portas. Uma placa de alumínio anunciava Coca Cola. Cobriram com ela a janela.  Um cachorro atravessou o pátio de barro ressecado. Sinal de vida.

Ficaram.

Aprenderam vida de pescador. Os poucos vizinhos acostumaram-se à presença inesperada. Não perguntaram origem. Cada qual com seu silêncio. O vento forte ordenava reclusão.  O desejo de saber dos outros acompanhou o vento. A faca nos peixes fez escorrer filetes de sangue.

No rosto um filete de sangue. Perturbação na memória.

Maria deu pra desandar. Procurar objetos perdidos pelo chão. Quem sabe um dia encontrava o que precisava. O que seria? Começou a busca insistente e não parou mais. Primeiro os objetos foram acumulados no quintal. Fios, pneus, conchas, baldes, tigelas, pedras, tijolos, restos de panos. Depois, por falta de espaço, ocupou a sala.

Juan tentou impedir. Não queria aquela ocupação. No olhar desmemoriado de Maria reconheceu o filete avermelhado. Entendeu. Cedeu espaço na casa. Organizou fileiras. Limitou passagens. Aos poucos a casa foi tomada.

O carro velho ganhou colchão. Virou dormitório.

Na casa ficaram segredos trancados.

Nem Maria, nem Juan sabem retomar o que de fato perderam.

Um sonho utópico. Um projeto de vida.

 

Agradeço a Fátima Vicente que me apresentou seu texto sobre os acumuladores.

M. Laurinda R. Sousa é membro do Departamento de Psicanálise, psicanalista e escritora. É colunista do Blog do Departamento. 

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