A transescrita e o bom humor de Camila Sosa Villada
Ainda no clima da Feira do livro
realizada na praça Charles Miller em junho último, Maria Laurinda e Gisela
Haddad fazem um relato sobre a apresentação da escritora argentina Camila
Sosa Villada. Confiram:
A
TRANSESCRITA E O BOM HUMOR DE CAMILA SOSA VILLADA
Gisela Haddad e M. Laurinda R. Sousa
Final de Junho.
Domingo. Fomos juntas à Feira do livro na Praça Charles Miller. Era um final de
tarde ameaçando chuvisco. Fazia um friozinho gelado, pouco convidativo para se
sair de casa. Ao passarmos pelo Palco Praça, arena principal da Feira, local em
que a argentina Camila Sosa Villada falaria, nos surpreendemos com o público numeroso,
encapotado, que já aguardava sentado, ainda que faltassem pelo menos uns 40
minutos para começar.
Decidimos comer
algo, e na conversa, quase perdemos a hora. Graças a algumas cadeiras fora do
espaço coberto, conseguimos nos acomodar junto à plateia. Em alguns minutos o
espaço fora da arena ficou lotado de pessoas dispostas a ficar em pé, no frio.
Não. Na plateia
não se via uma multidão composta em sua maioria pela população LBGT+ ou de jovens.
Era diversa. Camila impacta por sua presença. Muito agradável, inquieta, efusiva,
responde sem pestanejar às questões preparadas pela jornalista Adriana Ferreira
Silva.
Sua escolha em
escrever em voz feminina teria acontecido antes de sair às ruas vestida como
mulher. Foi um ensaio, ela afirma, uma
forma de se preparar para o que foi vivido como uma transgressão: saía
escondida dos pais, pulava a janela da casa, passava as noites na rua. Mas
gosta de frisar que ser escritora não é o destino de travestis, pois elas
costumam morrer antes de aprender a ler e escrever.
Não foi o seu
caso. Da infância lembra, em meio a cenas traumáticas e difíceis, a alegria de
ter aprendido a ler e escrever com os pais, aos quatro anos, antes mesmo da
entrada na escola. Também aprendeu cedo, que o que vivia podia/devia ser
transformado pela escrita, ou transescrita, como prefere frisar.
Camila não abre
mão de anunciar a saga de se saber habitar um corpo que não corresponde ao que
se sabe ser. Quando saiu de seu vilarejo para a universidade, em Córdoba, já
tinha a intenção de conhecer o Parque Sarmiento – famoso por suas travestis. A
convivência com aquelas mulheres e sua dura realidade, deu origem ao livro O
Parque das Irmãs Magníficas. Ainda
que tenha sido escrito com o sangue das violências sofridas, traz um registro
da importância da sororidade trans, ao descrever os espaços comuns de cuidado,
ou a figura de Tia Encarna, a “mãe” sem laços sanguíneos, que funciona como uma
rede de segurança, acolhimento e respeito.
Padecendo entre
a frase profética do pai que esperava o dia em que lhe avisariam que ela havia
sido encontrada morta, jogada em uma vala, e a promessa feita pela mãe à
Defunta Correa, santa milagrosa argentina, para que a filha deixasse de se
prostituir, Camila acredita que o “milagre” aconteceu. Sua atuação no teatro,
ao lhe render reconhecimento, abriu-lhe a possibilidade de se dedicar mais
intensamente à escrita.
Ao narrar a
própria história, Camila abre espaço para as histórias de vida das diferentes
mulheres com quem conviveu. Entre dramas e traumas, transforma em texto a
potência que há na existência e no corpo travesti. Lugar que faz questão de
marcar diante de perguntas que se referem às suas influências literárias, em
que se fosse um homem, um autor famoso, provavelmente não aconteceriam. Perguntas
que deixam explícita a surpresa de uma mulher trans ter uma escrita própria. Ainda
assim, cita suas maiores influências, como sua família, as conversas das tias
escutadas na cozinha, as irmãs magníficas, e também Marguerite Duras, Wislawa
Szymborska, Carson McCullers... Emenda com a fala dos amores perdidos, que se lhe
renderam inspiração para a escrita, também lhe custaram antidepressivos,
choros, tempos na análise. No mesmo tom divertido convoca a plateia a enumerar os
custos de se apaixonar, de marcar encontros, as horas no cabelereiro, a
maquiagem, as roupas íntimas, as depilações...
Escritora e
atriz, Camila veio à Feira do livro para o lançamento de três novos livros: A
namorada de Sandro, poemas escritos na juventude, mas revistos depois; queria
tirar o tom sentimentalista próprios da idade e da paixão que vivera. Sou
uma tola por te querer, um livro de contos, A viagem inútil: trans/escrita;
que ela apresenta como uma nova proposta para a linguagem, fora dos padrões
heteronormativos e Tese sobre uma domesticação; uma espécie de ficção,
cuja personagem é uma trans rica e bem-sucedida. Talvez um futuro ainda
longínquo para o nosso mundo povoado de fobias às diversidades, mas que Camila
deseja ser possível e com espaço para outras transescritas, de diversas
autorias.
Ao final, o
desejo de pedir autógrafos, comprar seus livros, vê-la mais de perto. A fila
era imensa e o frio gelado continuava. Fomos embora respeitando o que ela
dissera: “o importante é a minha escrita”.
Gisela Haddad é psicanalista, membro do Grupo Generidades do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e amante da literatura.
Maria Laurinda R Sousa é psicanalista, escritora, professora
do curso de Psicanálise e membro do Departamento de Psicanálise do Sedes
Sapientiae
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