O planeta dos macacos brancos

Ainda nas ressonâncias da palestra de Thamy Ayouch  "Por uma psicanálise antirracista" Maria Silvia Borghese faz um potente e tocante texto. Confiram:

 

O PLANETA DOS MACACOS BRANCOS

Maria Silvia Borghese

 

Carolina veio ao Brasil para participar do Fórum Latino-Americano de Educação Musical. Thiago saiu de São Paulo em direção ao Rio de Janeiro pela mesma razão. Os dois jovens educadores foram descritos por colegas e amigos como pessoas dedicadas a seu trabalho, sempre em busca de mais aprendizado e qualificação. Findo o evento, Carolina e Thiago saíram pelo Rio, passeando livremente, usufruindo da cidade que tem tantos encantos naturais quantos inúmeros lugares de encontros e vida social ao ar livre. Assim, esses dois educadores musicais chegam à Praça Tiradentes para se divertir em uma tradicionalíssima roda de samba, que por lá acontece nos finais de semana.


A Praça Tiradentes é um lugar especial. De um lugar de exibição e açoitamento de pessoas negras escravizadas até final do século XIX, passou a ser um ponto de encontro simbólico da luta do povo preto pela liberdade, pelos direitos de cidadania e de uma existência digna. Hoje em dia, a praça é do povo, literalmente. Exatamente nesse lugar, essa mulher e esse homem brancos esqueceram os princípios de sua formação como educadores musicais e também os preceitos civilizatórios mais básicos, sentindo-se livres para dançarem descaradamente como dois macacos brancos no meio do samba que inundava a praça de alegria e descontração, até aquele momento.


Obviamente, a cena triste e degradante, não passou despercebida aos olhos de várias pessoas ali presentes. Jovens negras e negros começaram a registrar a cena absurda em vídeo porque não é possível deixar passar ‘batido’ situações tão aviltantes como essa. Não! Não mais! Racismo, não mais!


Eu assisti ao vídeo várias vezes incrédula, boquiaberta. Enquanto assistia, muitas perguntas inundavam meu pensamento: por que isso segue acontecendo? Por que dois jovens educadores brancos encenaram peça tão lamentável? O que acontece com a branquitude?


São muitos os episódios semelhantes vividos nas arquibancadas de jogos de futebol mundo afora, sabemos. O jogador de futebol Vinicius Jr. e muitos outros tem sofrido cotidianamente cenas explícitas de racismo, tão ou mais violentas que essa. Porém, as perguntas insistiam. Por que as pessoas brancas, racistas, associam a população negra aos macacos? Ou ainda, como veio sendo construída essa relação e a que fins ela serve?


Os jovens ‘macacos brancos’ estavam externando despudoradamente seu racismo que, pelo visto, persistiu neles incrustado, apesar do processo educacional pelo qual certamente passaram. Podemos pensar no racismo sistêmico, estrutural, tão bem descrito por Silvio Almeida. Mas ainda me inquieta e preocupa a desfaçatez do gesto, a afronta explicita às pessoas que estavam na roda de samba e à simbologia e força de representação do lugar em que estavam. Como ousaram tanto? Como desprezaram as mínimas condições civilizatórias que, espera-se, dois educadores certamente conhecem bem?


Freud discute, no texto Uma dificuldade no caminho da psicanálise (1917), que a humanidade sofreu três feridas narcísicas: a teoria da evolução de Darwin, a revolução copernicana e a própria psicanálise. O homem destronado do centro do universo viu seu orgulho desafiado ao longo da história. História, é bom que se diga, sempre contada pelos vencedores, homens brancos e economicamente poderosos.


Aqui, me interessa particularmente os efeitos da teoria darwiniana sobre a humanidade. Inicialmente, a reação da Igreja Católica – e de diversas religiões – foi de forte rejeição e controvérsia. A Origem das Espécies (1859) confrontava a visão criacionista, colocava em xeque a própria existência de Deus, revolucionava a própria ordem social, uma vez que enfraquecia o controle social exercido pelas religiões que sempre ajudaram a manter pacificadas, em certa medida, as diferenças e injustiças sociais. Darwin buscava demonstrar que a espécie humana descende de espécies animais, dos primatas, que é também a espécie ancestral dos macacos. Ou seja, Darwin apontava nossa ancestralidade primata, do mesmo grupo dos macacos. Evoluímos até chegarmos a ser Homo Sapiens. As ideias evolucionistas eram vistas como uma ameaça à crença em uma humanidade originária de uma criação divina única.


Embora o darwinismo tenha sido contestado inicialmente por motivos religiosos, especialmente por sua incompatibilidade com o criacionismo bíblico, a oposição a Darwin se ampliou a outras esferas, sobretudo, ideológicas e econômicas. Se as fundamentações religiosas não serviam mais para explicar as diferenças e injustiças sociais como desígnio divino, outras teorias seriam necessárias e elas começaram a surgir. A noção de raça pura ou superioridade racial é herdeira desse desencantamento, uma vez que a ideia de ancestralidade comum entre todas as raças humanas era inaceitável e colocava em risco as estruturas das sociedades estruturadas a partir da revolução industrial com seus princípios liberais.


Logo, o darwinismo biológico foi distorcido para um tipo de darwinismo social, no qual alguns pensadores, como Herbert Spencer, passaram a defender o conceito de sobrevivência do mais apto, no qual alguns povos de raça mais pura seriam também os mais fortes e deveriam dominar as populações mais fracas. Em pleno período de colonização e escravização dos povos negros africanos, essas teorias eugênicas se tornaram fundamentais.


Em outras palavras, os supremacistas brancos se sustentavam nas ideias que enclausuravam os povos negros como sub-raça, eles, sim, ‘descendentes dos macacos’. Rapidamente, pseudoteorias passaram a sustentar as estruturas de dominação da sociedade capitalista. Mas de que maneira essas teorias ganharam tanto espaço e relevância?


Algumas contribuições clássicas de Freud nos ajudam a entender essa questão. Em Totem e Tabu (1913), posteriormente em O Mal-Estar na Civilização (1929), Freud nos alerta para o narcisismo das pequenas diferenças, descrevendo como grupos vizinhos, culturalmente semelhantes, tendem a focar nas pequenas diferenças entre si para reforçar a sua identidade. Essa tendência seria uma manifestação do narcisismo coletivo, no qual semelhanças incômodas são rejeitadas para destacar as distinções e criar um senso de superioridade.


Carolina e Thiago somos todas e todos nós, brancas e brancos. Somos forjadas e forjados a partir da crença de que nossa branquitude é ‘limpinha, boazinha e natural’. Porém, carregamos o fantasma do macaco, de um assustador e violento King Kong, que espreita e parece nos dizer o tempo todo que chegará o dia em que vamos perceber que esse lugar de privilégio não é natural, foi construido à custa de muita violência, de muita força bruta, de milhões e milhões de assassinatos acontecidos pela história da humanidade afora.

Carolina e Thiago somos nós. Saíram balançando os corpos, possuídos por sua própria bestialidade, talvez acreditando que estavam afrontando as pessoas pretas que se divertiam genuinamente na praça. Na verdade, seu ato serviu apenas para jogar a branquitude ainda mais nos recônditos mais malcheirosos de sua própria existência.


Para terminar, um fragmento de uma sessão de uma analisanda branca que é casada com um homem negro:

...depois de dois anos, engravidamos. Estava tão feliz! Três meses depois daquela difícil espera, saímos correndo para contar para todo mundo, família e amigos. Uma tia muito querida me perguntou, no entanto, se eu estava preparada para suportar dores intensas. Olhei para ela incrédula e triste. Por que estava estragando meu momento tão feliz? Ela emendou dizendo que o racismo estava chegando, o meu próprio racismo e o de todas as pessoas em volta. Aquilo me drenou, deprimiu muito. Naquela noite sonhei que estava assistindo ao filme ‘O planeta dos macacos’, mas havia uma diferença gritante. Todos os macacos eram brancos, quase albinos. Acordei pensando na crueldade insuportável da branquitude. Somos feras primitivas. Acordei, abraçando minha barriga e protegendo meu bebê. Acordei, me protegendo de mim mesma, protegendo a gente do planeta dos macacos brancos...

Maria Silvia Borghese é psicanalista, membro e professora do curso de Psicanálise do Departamento de Psicanalise do Sedes Sapientiae e colunista do Blog. 

Comentários

  1. Belo texto Maria Silvia. Histórias impactantes as produzidas neste mundo de macacos brancos

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

‘Onde estava o Isso, o Eu deve advir’: caminhos da clínica contemporânea por René Roussillon

Gaza como Metáfora