Mudanças no critério diagnóstico da obesidade: O que o psicanalista tem a ver com isso?
Camila
Junqueira tem se debruçado há algum tempo nas interfaces da
obesidade com a psicanálise, com o intuito de ampliar o debate sobre
sofrimentos ligados à alimentação e ao corpo e seus estigmas. Confiram no texto
a seguir.
MUDANÇAS
NO CRITÉRIO DIAGNÓSTICO DA OBESIDADE: O QUE O PSICANALISTA TEM A VER COM ISSO?
A
obesidade é uma doença que afeta 1 bilhão de pessoas, 12,5% da população
mundial, no entanto, estima-se que em 2035 os obesos serão 54% da população, revelando
uma tendência de crescimento exponencial. Embora a obesidade não seja uma
doença mental, como a anorexia, a bulimia e a compulsão, uma grande parte das
pessoas obesas apresentam sofrimentos ligados à alimentação e ao corpo, ora
causa da obesidade, ora consequência da obesidade e, muito frequentemente, tanto
causa como consequência da obesidade. A gordofobia, se encontra na raiz de
quadros de ansiedade e depressão, alimentados pelos estigmas em torno do corpo
gordo: doente, preguiçoso, incapaz etc.[1],[2]. Os estigmas também
colaboraram para o aumento de comportamentos alimentares disfuncionais, que
levam ao ganho de peso, prendendo o sujeito num ciclo infinito.
Comportamentos
alimentares disfuncionais, como a compulsão alimentar, ou outros, às vezes
menos evidentes, como ´beliscadores´, compensadores, comedores emocionais etc.,
podem levar ao ganho de gordura corporal, mas a nós psicanalistas, cabe
compreender os determinantes inconscientes desses comportamentos que levam o
sujeito a repeti-lo, ainda que lhe traga sofrimentos. À análise cabe implicar o
sujeito com seu sintoma e ajudá-lo a compreender o que tem de gozo, o que tem
de mensagem e o que tem de falta de capacidade simbólica em sua montagem
sintomática. Sem esclarecer o que há na ‘base do iceberg’, os sujeitos dificilmente
vão poder realizar mudanças consistentes em seus comportamentos alimentares.
Contudo,
estudando os comportamentos alimentares, que muitas vezes encontram traços de
fixações na fase oral, vemos que são de difícil acesso. A introdução alimentar,
e muito de suas marcas mnêmicas, fazem parte daquilo que Roussillon[3] tem denominado de arcaico,
e que deve ser diferenciado do infantil, pois foi instalado antes da linguagem ter
sido bem estabelecida e carrega quase tão somente marcas sensoriais. Essa é
umas das razões que as problemáticas alimentares nos impõem, frequentemente, uma
abordagem interdisciplinar, onde o trabalho com abordagem nutricional transcende
os casos em que há uma urgência orgânica (mais comumente em anorexias e
bulimias) nos quais, a nutrição garantirá a vida do paciente enquanto a análise
opera. A abordagem nutricional encontrará um vasto campo de trabalho em outros
casos, nem tão graves do ponto de vista orgânico, em que a abordagem
nutricional poderá ser um catalizador de insights, de lembranças e de emoções
que podem ser articuladas no processo analítico. Com a intenção de aprofundar a
discussão sobre as Interfaces da Nutrição e da Psicanálise na Clínica
Psicanalítica das Problemáticas Alimentares convido a todos a assistir o
evento que será realizado em 21 de fevereiro de 2025 no auditório do Sedes. https://sedes.org.br/site/eventos/codigo-9471/.
Mas já cabe mencionar que a abordagem nutricional à que me refiro é diametralmente
oposta às ‘dietas de gaveta’, mas, também, difere da abordagem comportamental
não prescritiva, pois inclui a apreciação da dimensão inconsciente do
comportamento alimentar.
No
entanto, como psicanalistas, não podemos perder de vista os aspectos sociais envolvidos
nas formações dos sintomas, dos ideais sociais na formação dos ideais superegóicos
e na construção do desejo! Nesse sentido, o psicanalista precisa estar atento aos
impactos da pressão estética, à normalização de certos comportamentos
alimentares a partir da mentalidade da dieta, à ansiedade gerada pelo
terrorismo nutricional e pela gordofobia[4].
Pesquisas
recentes realizadas pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e
Saúde - NUPENS[5]
e Chris Van Tulleken[6] (entre outros) indicam que
a causa mais frequente da obesidade, e seu aumento exponencial nas últimas
décadas, estão relacionados com o consumo de ultraprocessados. Assim me parece
importante compreender o que leva o sujeito ao consumo desses produtos. Não se
trata, é claro, de desresponsabilizar o sujeito por suas escolhas, mas de
considerar até que ponto o sujeito pode de fato escolher?
Numa
pesquisa já antiga, Michael Pollain[7] afirma que com 1 dólar
você pode comprar cerca de 250 calorias de comida in natura, mas com
esse mesmo dólar você pode comprar 1200 calorias de comida ultraprocessada!
Então, quando moramos em um país em que uma única banana custa mais caro do que
um pacote de macarrão instantâneo, pensemos se seria justo responsabilizar apenas
o sujeito por escolher ultraprocessados e ganhar peso em consequência disto?
Até
poucas semanas atrás, a obesidade era definida pelo índice de massa corporal
(IMC), calculado como o peso (em quilos) dividido pela altura (em metros) ao
quadrado. De acordo com a OMS, um adulto com IMC ≥ 30 kg/m² é considerado
obeso. No entanto, o IMC é um índice muito questionável[8] para avaliações individuais,
revelando-se útil apenas para pesquisas epidemiológicas, pois é um índice que
desconsidera dados sobre idade, gênero, raça e a composição corporal (massa
magra x massa gorda), resultando em inúmeras distorções individuais. Análises individualizadas observam que nem
todas as pessoas com IMC ≥30 apresentam consequências orgânicas da adiposidade,
como diabetes, hipertensão, estenose ou arteriosclerose, o que resultou nos
últimos anos na reivindicação do reconhecimento da, então denominada,
‘obesidade metabolicamente saudável’, com a intenção de sustentar a ideia de
existência de um corpo gordo saudável, e, portanto, caminhar em direção a uma
diminuição da estigmatização de modo geral.
Muito
recentemente, em 14 de janeiro de 2025, uma equipe de 58 cientistas reunidos
pelo King’s College of London lançou uma nova proposta para o
diagnóstico da obesidade[9]. Nesta proposta o IMC deve
ser complementado por outras medidas que revelem com mais precisão a existência
de tecido adiposo em excesso, tais como a circunferência da cintura e a
proporção entre o quadril e a altura, além a existência de outros sintomas
clínicos, que não sejam causados por outras doenças, tais como: dificuldade de falta
de ar, apneia, pressão alta etc. O exame
de imagem DEXA seria o ideal para aferir a adiposidade, mas há uma preocupação
destes cientistas em propor parâmetros que possam ser facilmente avaliados pelo
médico clínico, sem a necessidade de exames de alto custo.
De
acordo com esta proposta, as categorias diagnósticas, que antes eram divididas
entre sobrepeso e obesidade (de grau I a III), devem ser substituídas pelas
categorias: obesidade pré-clínica - quando a adiposidade é apenas um
fator de risco e não a causa de sintomas já instalados, e os pacientes devem
ser encaminhados para a prevenção; e a obesidade
clínica - em que a adiposidade está relacionada a sintomas que representam
comprometimentos orgânicos e de qualidade de vida, e os pacientes devem ser
encaminhados para tratamento. Há o reconhecimento, portanto, de um corpo gordo
sem doença, mas que é considerado fator de risco, e, portanto, não pode ser
denominado exatamente de saudável. Desse modo, se há um avanço na ideia de que
o IMC não é um bom parâmetro isoladamente, a divisão em obesidade pré-clínica e
clínica não avança para concluir a discussão da gordofobia.
O
que mais preocupa nessa alteração nos parâmetros diagnósticos, além de deixar a
gordofobia fora da discussão, é compreender a que interesses esse novo
parâmetro responde. Sabemos que a indústria de ultraprocessados não está
satisfeita com as pesquisas que apontam uma correlação entre seus “alimentos” e
a epidemia de obesidade mundial, e financia pesquisas para negar essa
correlação[10].
Será que a diminuição de diagnósticos de obesidade enfraquece os resultados
dessas pesquisas? Sabemos também que os diagnósticos podem ser inventados a
serviço da indústria farmacêutica para vender seus remédios, mas também diagnósticos
podem ser eliminados para diminuir os custos dos convênios e da saúde pública
também, que, em função da adição dessas novas categorias, poderiam passar a
negar exames e assistência!
O
mundo anda complexo, e nosso pacientes, e nós mesmos, às vezes podemos nos
sentirmos perdidos e angustiados, e confundidos diante de tantos conflitos de
interesse. É neste contexto que deixo o convite para que os psicanalistas se
aprofundem na escuta das problemáticas alimentares em sua dimensão intrapsíquica,
intersubjetiva e social.
Camila
Junqueira é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise
do Instituo Sedes Sapientiae, Doutora e Pós-Doutora pela USP, Coordenadora de
Professora do Curso de extensão: A abordagem psicanalítica das problemáticas alimentares,
autora de livros, capítulos e artigos sobre este tema, e sobre a clínica dos
sofrimentos narcísicos.
[1] Poulain, Jean-Pierre (2013) A sociologia
da obesidade. São Paulo: Senac
[2] Jimenez, Maria Luisa (2022) Lute como uma
gorda. São Paulo: Jandaira.
[3] Roussillon, René (2024) Evento – Novos
paradigmas para o pensamento e a prática psicanalítica e novos desdobramentos,
que ocorreu em 21 de setembro no Centro de Estudos de Psicanálise – CEP.
[4] Junqueira, Camila (2023) As tramas da
compulsão. In: Camila Junqueira & Maria Castanheira (Org.) O atendimento
psicanalítico da compulsão alimentar. São Paulo: Zagodoni.
[5] Nilson EAF, Ferrari G, Louzada MLC, Levy
RB, Monteiro CA, Rezende LFM. Premature Deaths Attributable to the Consumption of
Ultraprocessed Foods in Brazil. Am
J Prev Med. 2023 Jan;64(1):129-136.
[6] Tulleken, C. V. (2024) Gente
ultraprocessada: por que comemos coisas que não são comida e por que não
conseguimos parar de comê-las ? São Paulo: Editora Elefante
[7] Poullan, Michael (2006) O dilema do
onívoro: uma história natural de quatro refeições. Rio de Janeiro: Intrínseca.
[8] Anjos, L. A.. (1992). Índice de massa
corporal (massa corporal. estatura-2) como indicador do estado nutricional de
adultos: revisão da literatura. Revista De Saúde Pública, 26(6), 431–436.
[9] https://www.thelancet.com/journals/landia/article/PIIS2213-8587(24)00316-4/fulltext
[10] Denunciado por Tulleken, apud cit
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