Ecos do XIII Congresso da FLAPPSIP

Mantendo acesa a chama da FLAPPSIP peruana, o Blog abre espaço para textos de quem ali esteve — vozes que se transformam em verso ou prosa como os de Marcia Bozon. Confira!

 

ECOS DO XIII CONGRESSO DA FLAPPSIP

Marcia Bozon


O XII Congresso da FLAPPSIP aconteceu recentemente em Lima, Peru, país vibrante, com suas cores e sabores, com sua riqueza histórica, com seu povo gentil e hospitaleiro. Foram dias intensos, nos quais a atenção e o desejo se dividiam entre acompanhar a programação do congresso e desvendar a cidade, transitando entre museus, parques, bairros pitorescos e restaurantes incríveis.

Nosso primeiro encontro entre colegas se deu na véspera do congresso no Museu do Larco, quando diferentes grupos se encontraram espontaneamente para visitar esse museu que abriga cerca de 30.000 peças arqueológicas, compondo uma cosmovisão andina que nos permite compreender o desenvolvimento das sociedades pré-colombianas. Nos encantamos especialmente com a galeria erótica, composta por uma coleção de peças de cerâmica, revelando a riqueza do erotismo permeado pela noção de "tinkuy", presente nas tradições quéchua e aimará, que representa o ato simbólico do encontro gerado pela confluência ou choque fecundo de forças opostas e complementares. Nessa perspectiva o equilíbrio só existe na relação, compondo uma lógica do "entre" na qual a sexualidade feminina é positivada, ativa em sua receptividade. Ao final da visita o sentimento que tivemos foi de estarmos, séculos depois, retomando algo que fluía com tanta naturalidade na compreensão dessas antigas civilizações.

O primeiro dia do congresso foi intenso, nosso Departamento muito bem representado por Silvia Alonso na mesa inaugural, seguido pela participação de Renata Cromberg na mesa plenária e pela participação de tantos outros colegas nas mesas paralelas.

No segundo dia, tivemos a conferência magistral de Isildinha Baptista Nogueira que abordou com clareza e profundidade os efeitos do racismo no sujeito negro, tema fundamental sobre o qual temos nos debruçado coletivamente em nosso Departamento e no Instituto Sedes, buscando formas de compreender e tentativas de reparar as marcas de sofrimento deixadas por anos de silenciamento. Seria impossível comentar aqui outros trabalhos de colegas nas mesas paralelas, pois estaria novamente diante da difícil escolha que experienciamos no congresso, com tantas apresentações em horários simultâneos. Posso afirmar que a potência de nosso Departamento marcou presença, com um número expressivo de participantes distribuídos pelas mesas aos longos dos três dias, vozes diversas, transitando pelos diversos temas que nos inquietam teórica e clinicamente, sejam relativos ao campo das psicopatologias, sejam relativos ao contexto sociopolítico.

Nos dias em que antecederam o congresso o Peru teve seu oitavo presidente deposto, dessa vez a primeira mulher a ocupar o cargo. O centro de Lima estava tomado por manifestações - que resultaram na morte de um manifestante - era possível sentir a tensão que pairava no ar. No meu caso, iniciei minha viagem por Cusco alguns dias antes do início do congresso, movida por um antigo sonho de visitar a cidade sagrada de Machu Picchu e pude, logo nos primeiros momentos do dia de domingo, presenciar uma parada militar na Praça das Armas - pelo orgulho e valentia no coração do império inca. A cena evocou em mim memórias do romance de Gabriel Garcia Marques "Cem anos de solidão" e causou assombro o exibicionismo militar marcando presença numa data que desde 2009 é lembrada como o "Dia dos povos originários e do diálogo intercultural". Ali ficou claro o tensionamento entre o esforço de validar a história pré-colombiana, tão presente e viva através dos saberes, da cultura e dos corpos do povo peruano e a pressão pela manutenção de uma antiga ordem, na qual a história do Peru tem início com o "descobrimento" da América por Cristóvão Colombo. Vale destacar que até o início dos anos 2000, a história pré-colombiana era ensinada nas escolas através de uma abordagem eurocêntrica, na qual as culturas andinas eram apenas mencionadas como etapas precursoras da cultura peruana pós "descobrimento", negando ao povo o reconhecimento de sua diversidade multicultural e multilíngue, excluindo qualquer referência aos saberes andinos e à sua continuidade até os dias de hoje.

A visita à cidade sagrada de Machu Picchu, acompanhada por um guia local extremamente atencioso, foi de fato surpreendente. O encaixe das pedras sem argamassa, a harmonia das construções com o entorno rodeado por montanhas, foi uma oportunidade de experienciar corporalmente o "tinkuy", esse encontro harmônico entre os opostos representados pelo céu e pela terra, pelo humano e pelo transcendente. Posso dizer que nem o turismo em massa é capaz de destituir esse lugar de sua magia!

Por fim me resta destacar a delícia dos encontros com os colegas, nos cafés da manhã, nos passeios, nas mesas paralelas, nos intervalos do congresso - em que fomos recebidos com generosos buffets de comidas típicas - trocas que nos nutriram em tantos aspectos, teóricos e afetivos, que nos permitiram estreitar laços, estabelecer aproximações e matar saudades. Considero que a entrada do Departamento de Psicanálise na FLAPPSIP nos proporcionou essa preciosa oportunidade de nos encontrarmos fora de casa, de expressarmos de modo mais amplo e genuíno nossas singularidades através da experiência de estarmos juntos transitando em espaços mais amplos.

Ao final foi com emoção que assistimos a transferência da presidência da FLAPPSIP para Silvia Alonso, que reconheceu o caminho de crescimento e de fortalecimento da Federação Latino Americana através das trocas estabelecidas entre os países que a integram, seja através de congressos, simpósios ou publicações. Afirmou o compromisso em sustentar os princípios éticos presentes desde a sua fundação, entre eles o de fazer crescer uma psicanálise aberta ao mundo, acolhendo as problemáticas comuns e diferentes de cada país da América Latina.

Em seguida foi exibido o maravilhoso filme "Brasil: até 2027" de Miriam Chnaiderman, um breve e sensível retrato do nosso país, revelando um pouco de sua exuberância, de sua pluralidade cultural e de sua história marcada pela repressão política, algo que nos aproxima de nossos vizinhos latino-americanos e que ecoa em nossos corpos, em nossos sonhos e em nosso modo de pensar e de fazer psicanálise.

Marcia Bozon é psicanalista, doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, membro do Depto de Psicanálise do Instituto Sedes onde integra o Conselho Editorial da Revista Percurso e coordena o GT Winnicott Leituras e Reflexões.


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