A Literatura como registro da memória
Convidada a participar do debate sobre A nova ordem, livro de Bernardo Kucinski, no evento "Distopias" do Ciclo de literatura e psicanálise, organizado por Luís Fernando Santos, Paulina Rocha e Rodrigo Veinert, M. Laurinda faz um relato sensível destacando o lugar da "esperança" aquela que pode enfrentar o "memoricídio". Confiram!
A LITERATURA COMO REGISTRO DA MEMÓRIA
Mas nós sobrevivemos. E como na literatura, deve haver sempre um sobrevivente para contar a história dos mortos. Nós, os que conseguimos sair vivos, carregamos o dever da memória.[1]
A frase acima foi retirada do relato de um dos sobreviventes do genocídio praticado em Gaza. Nele, Ali, seu autor, fala da dor vivida durante os combates, dos amigos e parentes desaparecidos entre os escombros, dos corpos que não serão encontrados. Dos cotidianos interrompidos. Das vozes silenciadas para sempre. Da luta que continuará no esforço para reativar os antigos caminhos e encontros, para reconstruir as casas, para relançar a vida tão atravessada pela morte. Fala, também, de uma esperança. Esperança ameaçada pela dúvida e pelo medo. E enuncia um apelo à literatura: seu poder/dever de contar a história dos mortos, de permitir o registro da memória. Apelo já presente no último poema de Refaat Alareer[2]: ...Se eu morrer/faça com que eu traga esperança/faça com que eu seja uma história.
Esses apelos remeteram-me ao Ciclo de literatura e psicanálise, realizado na Biblioteca Mário de Andrade, nos dias 29/9 a 4/10, com o tema Distopias, organizado por Luís Fernando Santos, Paulina Rocha e Rodrigo Veinert. Sua apresentação tinha como formato um convite ao pensamento sobre a distopia contemporânea e tentativas de presente e futuro a partir de livros distópicos de autores brasileiros. A mesa do dia 30, teve como título: Tudo é possível, e o livro referência foi A nova ordem, de Bernardo Kucinski. [3]
A Nova ordem é uma história do terror das ditaduras, dos direitos excluídos, dos corpos eliminados e desaparecidos. É sobre essa ordem distópica, e sobre a intensidade da escrita-testemunho de Bernardo Kucinski, que quero lhes falar.
Símbolo da memória de resistência, Kucinski encontra em sua escrita, uma forma de manter viva a memória política deste país. Como jornalista atuou na defesa da liberdade e autonomia da imprensa e participou da formação dos jornais alternativos da década de 70, entendidos por ele como uma das grandes manifestações da Utopia no Brasil. É significativa a epígrafe que escolheu para um de seus livros (Pretérito Imperfeito): “Todas as dores podem ser suportadas se você as puser numa história ou contar uma história sobre elas”.
Os relatos das experiências traumáticas, os testemunhos, as produções artísticas (filmes, peças de teatro, músicas, livros, encontros como o Ciclo de Literatura e Psicanálise), são construções potentes para manter viva a memória e fortalecer a resistência às novas políticas totalitárias, que insistem em velar/negar o acontecido e exaltar uma outra história – a que engrandece o poder abusivo e libera o ódio aos que se opõem ou resistem a ela, sem nenhuma possibilidade de mediação.
É com esse espírito que Kucinski se inicia na literatura. K – relato de uma busca, seu romance de estreia, publicado em 2011, aos 74 anos de idade, é a história de um pai em busca da filha desaparecida durante o regime ditatorial decorrente do golpe de 64. O romance se inicia com uma carta a uma destinatária inexistente. E o pai se pergunta: “Como é possível enviar reiteradamente cartas a quem inexiste há mais de três décadas?” O carteiro que entrega a carta ao pai nunca saberá que ela foi sequestrada, torturada e assassinada pela ditadura empresarial militar.[4]
O tema dos desaparecidos continua no livro escrito em 2023: Congresso dos desaparecidos. A ideia lhe ocorreu ao ser convidado para um Encontro de familiares e desaparecidos, realizado em Brasília, ao final do governo Dilma Roussef. Ao receber a convocatória lançou uma pergunta: E se fosse um Congresso dos próprios desaparecidos? Traz, então, para a escrita, o corpo e a fala dos desaparecidos permitindo que contém a história que viveram e que saibam o que aconteceu com cada um deles. Como se lhes fosse possível saber do futuro que lhes foi amputado. Nesse Congresso estão todos que o sistema insiste em excluir: os destituídos de sempre.
A Nova Ordem se inicia com uma cena de extermínio: todos os cientistas, aglomerados num galpão, são colocados diante de um fosso. A uma ordem do coronel, são metralhados e empurrados para o buraco. O coronel pula para o fosso e atira nos que ainda sobrevivem. Assustada com esse relato, pulo para a última página: “Esta obra foi impressa em São Paulo, em 2019, primeiro ano do governo do presidente Jair Bolsonaro, apologista da Ditadura Civil Militar”. Por que o susto? Não sabia eu do que se tratava? Talvez, seja assim o efeito do impacto do traumático; sempre transbordante, incapaz de prenúncio.
No livro, são os utopistas que ameaçam a nova ordem. São eles que precisam ser eliminados. Ariovaldo, o médico responsável pelas torturas, decide criar uma forma de penetrar nos segredos dos sonhos; um enorme potencial de controle social. A Nova Ordem, propõe a formação de Psicanalistas informantes e o desenvolvimento de chips que docilizam os corpos eliminando paixões e revoltas. Mas, ao eliminar as paixões, eliminam-se, também, os sonhos. E as fórmulas de controle vão se esvaindo... Mas, elas sempre reaparecem... Contra esse poder, “é preciso estar atento e forte”.
Quase como resposta, Kucinski escreve, em 2022, O colapso da nova ordem, conforme relatado nas Crônicas do Fim do Mundo”. Mas, essa já é uma outra história.
Para nós, que fomos testemunhas dos acontecimentos relatados em seus livros, uma gratidão imensa a esse autor que nos permite o encontro com um registro significativo de nossa própria história.
Aos que ainda não o leram, um convite a que o façam. Trata-se, como afirmou Marcio Seligmann-Silva, “de um projeto literário sólido que se volta contra as políticas de esquecimento e de memoricídio tão fecundas neste país.”
Tentativas de futuro? Uma aposta no impossível mesmo que tudo pareça contradizê-lo. Tempos em que se possa afirmar que a vida não é útil e que o Mercado não é senhor da Terra. Tempos em que a memória do vivido seja antídoto à repetição do traumático.
P.S. Bernardo Kucinski, generosamente, esteve presente nesse encontro. Atendeu ao convite enviado por Astréa ao editor d’A Nova Ordem.
Maria Laurinda R. Sousa é psicanalista do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e escritora. É colunista do Blog do Departamento Outubro/2025.
[1] Relato de Ali Skaik, escritor e estudante do primeiro ano da faculdade, em Gaza, no dia 13/10/2025, após o anúncio do “cessar fogo”. Matéria completa no site Outras Palavras
[2] Poeta palestino, professor de Literatura Inglesa, morto em um bombardeio na Faixa de Gaza em 6.12.2023. Foi um dos fundadores do projeto “Nós não somos números”.
[3] Participei dessa mesa junto com Rafael Alves Lima. A Mediação foi feita por Astréa Ribeiro. Agradeço a Paulina pelo convite para fazer parte desse Ciclo.
[4] No início do livro um aviso ao leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu. Perseguido político, Kucinski viveu exilado na Inglaterra, retornando ao Brasil em 1974. Sua irmã, Ana Rosa Kucinski e seu cunhado, Wilson Silva, foram presos e assassinados no mesmo ano; são considerados desaparecidos políticos.
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