Paternidades III: Paternidade e cânones atuais, por Ricardo Gomides
Nesse e no nosso próximo post sobre o tema Paternidades apresentamos o relato de dois papais sobre sua prórpia experiência. Boa leitura!
Paternidade e cânones atuais
Diante da proposta de pensar minha experiência de paternidade, iniciada
há pouco mais de 8 meses, curiosamente me veio a associação com a “angústia de
influência” de Harold Bloom. De algum modo nós, que criamos nossos filhos,
sofreríamos algo similar aos literatos quando criam suas obras.
A teoria deste crítico aponta uma dificuldade no caminho de formação dos
escritores: superar a influência de seus mestres literários, os cânones da
escrita exemplar, para conseguirem atingir um estilo próprio. Penso que os pais
recém-chegados a esta seara sofrem com a influência de seus outros cânones.
Confesso que alguns deles me eram completamente desconhecidos até bem pouco
tempo atrás – o que não diminui em nada sua capacidade de domínio. Acredito que
vale a pena falarmos de algumas destas referências capazes de constituir
parâmetros angustiosos.
O primeiro cânone com o qual qualquer pai se depara após a notícia da
gravidez é a decisão pelo parto natural ou pela cesárea. Não há meio termo e os
discursos sustentando uma ou outra escolha são fortes e conclusivos: ou se está
do lado do método natural que reconhece uma medicina humanizada e favorece o
vínculo mãe-bebê ou se escolhe uma intervenção artificial que poupa a mulher da
completude desta experiência e favorece a lucrativa medicina intervencionista.
Reconheço o valor e a justificativa histórica que sustentam as duas
posições e não pretendo defender ou criticar qualquer uma delas. Apenas atesto
que a influência pode ser forte a ponto de tornar o nascimento da criança um
fato secundário. A forma do parto se tornaria motivo de orgulho ou vergonha,
dependendo do lado em que você se encontra nesta trama discursiva. Aderir
completamente a estes cânones produziria absurdos similares à cópia vazia de um
autor célebre. Algo como um pai dar a notícia do nascimento de seu filho
acrescentando tristemente: “mas foi de cesárea”. Por outro lado, temos
conhecimento de maternidades lotadas em datas como 12/12/12, pois dias assim
seriam emblemáticos para se dar à luz. Acredito que superar estas referências
ostensivas, saber respeitar as peculiaridades de cada escolha e comemorar o
momento mágico de receber nossos filhos nos braços deveria ser mais importante
do que o método que os trouxe até nós.
Na sequência do parto conhecemos o cânone da puericultura. Como se cuida
de um bebê recém-nascido? Estão abolidos os “charutinhos” utilizados por nossas
mães, mas vale o wrap e a técnica francesa de tentar
reproduzir o ambiente uterino vivido pelo bebê durante a gestação. A
amamentação exclusiva ao seio rivaliza com a adoção das fórmulas artificiais,
devendo a mãe (e o pobre do pai) fazer o que der para a criança aprender a
sugar corretamente a mamadeira ou o seio. Uma luta surge neste momento, sendo
tanto mais sofrida quanto mais forte é a angústia de influência. Se apenas a
amamentação ao seio é correta, junto à dor de um bico de seio rachado se
juntará a culpa pela falha em não prover o único alimento que seu filho deveria
receber pelos próximos 12 ou 24 meses! Sim, o prazo de amamentação pode ser
bastante elástico, dependendo de suas convicções.
O modo de cuidado, as técnicas de manejo, os utensílios, pomadas,
brinquedos de estimulação, é tudo tão novo que nossas mães são obrigadas a
assumir: não sabem cuidar dos netos! Está tudo diferente. Como o cânone delas
era outro, estas autoras de nossa criação se sentem incapazes diante do estilo
vanguardista da nova literatura puerperal. Não à toa surgem cursos de
reciclagem para avós. Claro, pois só assim as escritoras, digo, as mães atuais
deixariam seus filhos com as parnasianas genitoras.
E o que dizer da alimentação? Quando e quais alimentos introduzir? Em
tempos de gourmetização das refeições e temor de agrotóxicos e transgênicos,
onde encontrar os alimentos orgânicos mais frescos e certificados? Os alimentos
passarão pela peneira, serão amassados com garfo, triturados com mixer
(valha-me Nossa Senhora!) ou oferecidos segundo o método BLW? Sim, o método BLW
(Baby-led Weaning - Desmame Guiado pelo Bebê) advoga pela apresentação de
pedaços de alimentos ao bebê, deixando de lado as papinhas.
Difícil superar a pregnância destas referências atuais, oferecidas com o
peso das modas científicas, especialmente se as porta-vozes da tradição, nossas
mães e avós, batem em retirada, com medo de caírem no ridículo de dizerem o
quanto nos criaram errado. A discrepância é tão grande entre os cânones que, se
levarmos a sério demais a cartilha atual, trataríamos como um verdadeiro
milagre estarmos aqui para contar nossa história e nos arriscarmos a ter um
filho, depois do que elas fizeram a nós.
Como sem cânon não há autor que escreva, uma vez que precisamos ler para
nos aventurarmos a escrever, tenho comigo a sugestão winnicottiana de que uma
mãe e um pai devotados e comuns resolvem com bom senso aquilo de que precisam os
filhos. Tento me informar das sugestões disponíveis no mercado do saber atual,
pegando aqui e ali o que convier a mim e minha família. Sem querer acertar nem
errar demais, tento aprender especialmente o que não está em cartilha alguma:
como me torno pai da minha pequena e adorável filha.
Mais do que as certezas de todos os cânones, me alegra conhece-la em
seus mais diferentes gestos, contando aí seus choros iniciais, o sossego de seu
sono e a força doce de sua mão inteira, que me emociona todas às vezes quando
segura meu indicador. Nenhuma referência, por mais necessária que possa ser (e
são), pode nos preparar para o encantamento de uma voz que não balbucia
palavra, mas enuncia o mistério de reconhecermos nossa história viva em uma
vida que se cria ao nosso lado.
Ricardo Gomides é pai de uma menina de 8 meses, psicanalista, psicólogo, mestre e doutor em
Psicologia - USP, membro-aspirante do Departamento de Psicanálise do
Instituto Sedes Sapientiae.
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