Paternidades: Pais para que? por Vera Iaconelli
Neste mês nosso tema é "Paternidades". Estreamos com o texto de Vera Iaconelli.
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PAIS PRA QUE?
O termo “pais” encerra uma ambiguidade em
português, podendo se referir tanto aos homens na função parental, quanto ao
casal parental. Neste sentido, a pergunta do título, visa os dois sentidos,
mãe/pai e pais, uma vez que um reflete diretamente no outro.
Desde o século XV, com os problemas sociais
decorrentes do descaso generalizado a que estavam submetidos bebês e
crianças, que se busca uma forma de se dar conta desta
população. Não havendo contracepção eficaz, o aborto colocava em risco,
muito mais do que hoje, a vida da mulher e obviamente as gravidezes não
respondiam necessariamente ao desejo dos pais. A massa de bebês e crianças,
mortas, abandonadas e entregues aos cuidados de mães mercenárias vai se
tornando um problema social que aflige a todos e onera o estado. Saídas como
criá-los para se tornarem militares ou ocuparem as colônias vão
esbarrando na necessidade de que os cuidados iniciais sejam
suficientes para que estas crianças cheguem a idade adulta minimamente
saudáveis. Mas como sabemos, os cuidados que demandam bebês e crianças
até chegaram a adquirir alguma autonomia são de tal magnitude que logo
ficou claro quão oneroso seria para o estado se incumbir de tal tarefa.
Feitas as contas, percebe-se que arregimentar a mulher nesta tarefa a
partir do apelo da amamentação, quem melhor para cuidar do bebê do que aquele
capaz de alimentá-la naturalmente?, é a solução com melhor relação custo
benefícioi. A partir daí um alonga campanha encampada por
cientistas, artistas e religiosos e que demoraria séculos para surtir seus
efeitos de adesão das mulheres vai provando por “a+b” que a mulher é
a cuidadora insubstituível do bebê e da criança. Dentre suas incumbências estão
a saúde física, psíquica, religiosa, intelectual e moral de cada criança. A
cada uma destas responsabilidades impostas corresponde um profissional
obsequioso de orientá-la e avaliá-la em seu fazer junto a criança (médico,
psicólogo, padre, professor...). A contrapartida desta incumbência é um certo
reconhecimento social nesta função. Uma mãe dedicada é uma boa mulher, piedosa,
psiquicamente sã e moralmente louvável. O pai é o provedor e aquele que deixa
espaço na agenda para que ela seja mais mãe do que mulher. Deixa tanto espaço
que por vezes prefere buscar os préstimos de outras mulheres no que tange à
sexualidade, que passa a estar maculada pelo imperativo reprodutor quanto se
trata da esposa.
Pano rápido e nos vemos no século XXI, época em que
a amamentação não pode ser diretamente associada à sobrevivência dos
bebês, a contracepção teve grandes avanços e o provedor se divide igualmente
entre homens e mulheres. Caberia perguntar quem se incumbe do bebê hoje? Ainda,
exclusivamente as mulheres. E quando não, trata-se do pai-arremedo, aquele que
quando é bom pai é “quase” uma mãe, ou um “pãe”.
A psicanálise também não deixa de ler a ausência da
mãe como um prejuízo incontornável para o bebê e a ausência do pai como um
clássico “declínio do patriarcado”. Saudosismos seculares à parte, cabe
perguntar afinal, “pais pra que?”
A constituição do sujeito implica que o
recém-nascido receba do outro um desejo não anônimo para “chamar de
seu”, que seja alvo de imensa dedicação e investimento narcísico, vulgarmente
conhecido por amor; que herde um lugar no registro simbólico a partir de
sua nomeação e que receba incansáveis cuidados e
proteção ao longo de muitos anos. Tarefa incansável e árdua que
implica em um entorno que sustente quem a realiza. O mesmo entorno que nos
séculos precedentes vem cobrando as mulheres de realizá-la por sua conta e
risco, usando o famoso “toma que o filho é seu”, e que nossa época passa a
questionar. Se as condições de criação de sujeitos implicam em: desejo não
anônimo, dedicação, amor, lugar simbólico, nomeação, cuidados e proteção,
porque seria restrita às mulheres?
Afinal, não é para isso que servem os pais?
E ao Estado, que não se furta a fazer ingerências
sobre o corpo feminino, arbitrando sobre contracepção, aborto e parto, batendo
na tecla no feto-cidadão, também não caberia dar verdadeira consequência a esta
posição assumindo integralmente os cidadãos nascidos sem estatus de
filho que as gravidezes indesejadas impõem aos pais, mas acima de
tudo à mulher?
Muitas são as questões que se abrem em nossa época
a partir das novas configurações parentais. A psicanálise não pode se furtar a
enfrentá-las de forma aberta e reflexiva, assumindo sua vocação de estar “a
altura de seu tempo”, como nos dizia Lacan, inspirado na direção ética proposta
por Freud.
Vera Iaconelli é mestre e doutora em psicologia pela Universidade de São
Paulo. Coordenadora do Instituto Gerar de Psicologia Perinatal,
onde realiza curso de formação, desenvolve pesquisa em psicologia perinatal e
coordena a clínica social para gestantes e mães de bebês. membro do Departamento
de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Atua como psicanalista em
clínica particular.
[1] Para mais
informações sobre este capítulo da história dos cuidados com a prole humana
ocidental recomenda-se os já clássicos:
ARIÈS, P. História
social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
BADINTER, E. Um
amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985.
DONZELOT, J. A
polícia das famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
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