Paternidades IV: Pai e filho, por Rodrigo Savazoni

Encerramos o mês de agosto com nosso último post sobre "Paternidades". Vejam o relato da experiência de ser pai de Rodrigo Savazoni que, além de pai, é escritor, realizador multimídia, pesquisador e ativista.


Pai e filho
Tinha 23 anos e estava de ressaca quando Lia, minha companheira, me despertou com a notícia de que seu teste de gravidez dera positivo. Não quis levantar. Enfiei minha cabeça sob o travesseiro e segui dormindo. Liguei para minha chefe e disse que não iria trabalhar. Voltei para a cama e fui acometido de um surto que durou cerca de 48 horas. Nesses dois dias poderia ter escrito um compêndio de oito tomos sobre a destruição da juventude pela paternidade, tal era meu desespero. Era setembro de 2003, vivíamos em Brasília participando dos primeiros dias do governo Lula e estávamos imersos em uma esperança que hoje nos parece tão distante, mas que à época nos permitia sonhar com um novo futuro. Nenhum de meus amigos era pai. Ninguém da minha idade tinha filhos. Nossas famílias viviam longe. As noites eram de festa. Ter um filho me pareceu um erro de repertório. Tive medo. E fiz a mulher que eu amava – e sigo amando – sofrer. 

Avistei o fim do túnel de meu surto na manhã de sábado, pilotando meu carro, em uma epifania impulsionada pela voz de Caetano a recitar “o tempo é um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho...” O inesquecível sol da capital produzia reflexos nas poças de água do asfalto azul evocando uma beleza que eu desconhecia. Uma beleza que partia de dentro de mim. O tempo, bonito, a cara do meu filho. Meu filho. Minha filha. O pai que sou começou a existir naquela hora e fui tomado por uma profunda paz motivada pela certeza de que aquela sensação inédita anunciava apenas o início de uma das missões que justificaria minha existência. Uma percepção que eu compreenderia, anos depois, durante uma viagem xamânica, como constitutiva da “maternidade” que carrego dentro de mim. A maternidade que orienta o pai que sou.

Júlia nasceu em 2004. Está com 12 anos. Francisco em 2006. Completa dez em novembro. Ambos são meus filhos com Lia. Em dezembro passado, fiz uma cirurgia de vasectomia que pôs fim à possibilidade de ter filhos biológicos. Hoje sei que aquele medo inicial, que quase me paralisou, era apenas o prenúncio de muitos que eu viria a sentir. Lembro aquele medo como se fosse o de um atacante diante do pênalti decisivo na final do mais importante campeonato mundial. Um medo gigantesco que precede uma alegria indescritível. Júlia e Chico nasceram de parto normal. Em minhas mãos. Lia absolutamente linda em sua entrega a esse ritual violento e mágico de dar à luz uma criança. A égua, os líquidos espessos, os gritos, a vagina, a cabeça, o potro, o choro dos que nascem e dos que recebem os nascidos. Somos bichos.

Com o nascimento de Júlia, fui acometido por um profundo exercício de revisão de meu papel de filho, algo que ganhou ainda mais profundidade depois que Francisco veio ao mundo – quando passei a ser pai de um menino. Esse processo segue em curso e é objeto de meu diálogo com minha terapeuta. Sei que não fui um filho fácil. Tampouco difícil. Complexo, sem dúvida. De alguma maneira, eu não cabia no mundo que me cercava, e isso não tinha nada a ver com meus pais. Tinha a ver comigo. Mas em algum momento esse descompasso nos afastou. Saí muito cedo de casa, para estudar, rompi com meus amigos do passado, tive filhos e grandes responsabilidades precocemente. Mas o nascimento das crianças me fez iniciar a jornada de regresso aos braços onde posso me esconder em paz. Não ao mesmo lugar da infância, mas a outro que inventamos, a partir do momento que decidi morar na cidade que eles amam. Isso nos reaproximou e tem nos permitido viver nossa travessia de pais e filho em agradável temperatura, com longas caminhadas de diálogo franco ou ao redor de mesa farta e bom vinho. Sem dúvida, esse regresso contribuiu para que eu pudesse ser um melhor filho e pai.

O nascimento de Júlia e Francisco também me permitiu ver Lia – a mulher linda que por obra de Dóris, a deusa da generosidade do mar, escolheu-me para viver ao seu lado - tornar-se mãe. Seria impossível pensar a minha experiência paterna sem conectá-la à sua maternidade. Temos aprendido juntos a criar nossos filhos, nas avaliações quase sempre emocionais que fazemos, nas trocas de referências e expectativas, nos poucos embates (porque nos ouvimos), na assimilação e compreensão com os erros que cometemos. Da forma como a vivencio, a paternidade é um exercício conectado à maternidade de minha companheira, à revisão do que fomos como filhos, e ao que nos convoca a sociedade onde vivemos.

Júlia e Chico estão encerrando suas infâncias. Meus olhos se enchem de lágrimas quando escrevo isso, mas é só o tempo, bonito, transformando a cara dos meus filhos, que afinal só fizeram mudar até aqui. Sei que vão mudar muito mais: seus corpos, seus gostos, suas vontades. Talvez eles, como eu fiz um dia, resolvam mergulhar no desconhecido, mandando notícias esparsas de algum lugar longínquo. Talvez sejam outras as suas fomes. Enquanto ainda somos crianças, aproveito para inventar histórias e cantar canções, e me preparo para estar ao lado deles do jeito que precisarem nas fases futuras que virão. Passados alguns anos daquele surto inicial, o menino medroso tornou-se um homem de 36 anos que confia exclusivamente no amor para mediar sua relação com os filhos. Tornou-se um cara que busca materializar sua paternidade por meio de exemplos positivos – o que não é nada fácil – e diálogo constante, olho no olho, escuta e presença, porque só assim sabe fazer.

Rodrigo Savazoni é escritor, realizador multimídia, pesquisador e ativista. Trabalha neste exato momento na criação do Instituto Procomum, uma organização da sociedade civil voltada para a promoção dos bens comuns, da cultura livre e da inovação cidadã. Acredita que assim ajudará seus filhos a terem um futuro. É autor de quatro livros, entre eles um de poesia: “Poemas a uma Mão” (Azougue)

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