Coleção Clínica Psicanalítica

Coleção Clínica Psicanalítica, organizada pelo psicanalista Flávio Ferraz, lança mais um título: Sublimação e Unheimliche. Nele, a psicanalista Alessandra Martins Parente trata dos dois conceitos que dão nome ao livro por meio de um retorno à obra de Sigmund Freud, e estabelecendo algumas relações entre esta e a filosofia de Walter Benjamin. A matéria é tratada a partir de uma perspectiva histórica, que coloca essas duas noções da psicanálise em sintonia com os períodos em que foram inventadas pelo mestre de Viena.




Em Sublimação e Unheimliche, Alessandra Martins Parente dá dois passos em direção ao mapeamento, que pretende fazer, das categorias estéticas, existentes na obra freudiana. Segundo a psicanalista, que se dedica atualmente à pesquisa do estrangeiro em Freud, terceira e última dessas categorias, o conceito de sublimação tem sido usado de duas formas equivocadas na atualidade. Uma delas tem sido a de adotar o termo para tratar de aspectos muito distantes daqueles abordados por Freud sob tal nomenclatura. O maior exemplo dessa estratégia é, sem dúvida, o de Jacques Lacan em seu Seminário 7 – A ética da psicanálise. Ali, diz a psicanalista, observa-se um modo completamente inédito de tratar psicanaliticamente questões relacionadas à criação das obras de arte e da cultura, mas que pouco tem a ver com aquilo que o pai da psicanálise efetivamente dizia. A outra maneira é ainda mais problemática: trata-se de seu uso hoje da mesma maneira como o concebeu Freud, ainda no final do século XIX, começo do século XX. Para Alessandra Parente, essa estratégia é delicada por ser anacrônica e pouco interessante para pensar os processos psíquicos que se revertem em obras da cultura nos dias atuais. Faltava, declara, o esforço de situar historicamente o conceito, já que pensar os processos psíquicos e sociais, pelos quais se dão as formações das obras da cultura, exige uma contínua crítica histórica e política.

Observando o contexto da Viena fin-de-siècle, a autora pôde perceber os meandros do conceito de sublimação e o espírito melancólico que o envolve. Ao contrário de outras manifestações psíquicas, como os sonhos ou os sintomas, o processo sublimatório acaba por envolver os restos que resistem ao status quo com uma camada que apazigua seus efeitos subversivos. Isso ficou claro, diz Alessandra Parente, com a análise tanto da atmosfera do Império Austro-húngaro, como de obras específicas do período estudado. Uma delas foi O Édipo e a esfinge de Hugo von Hofmannsthal, vista pelo prisma das análises benjaminianas sobre o drama barroco alemão. Esse modelo sublimatório foi identificado ainda em algumas facetas do romantismo alemão, na análise de obras de Gustav Klimt e em As afinidades eletivas de Goethe, lida criticamente por Walter Benjamin. O próprio estilo freudiano traz, pelo menos até a Primeira Guerra, esse molde sublimatório carregado de alguns traços melancólicos.

Diferente desse perfil é aquele que se desenha no fenômeno unheimlich. A psicanalista lembra da anedota, bastante conhecida, de que dentre os textos freudianos dedicados à metapsicologia, e escritos durante a Primeira Guerra, haveria um sobre a sublimação, que teria sido destruído pelo pai da psicanálise. Sua hipótese é de que, com a guerra, Freud teria percebido os limites da sublimação e, em 1919, teria recuperado as esquecidas páginas esboçadas por ele sobre o Unheimliche. Teria feito isso, alega a autora, ao notar que este paradigma seria mais coerente com os aspectos formais da cultura pós-guerra. Aqui a psicanalista dedica-se a pensar como emergem os processos psíquico-sociais existentes na concepção formal de obras da cultura, ligadas à categoria de Unheimliche. Em sua visão, eles só podem aparecer no interior da temporalidade própria à psicanálise – a Nachträglichkeit –, que teria uma relação estreita com a filosofia benjaminiana da história. Nesse momento, os processos psíquicos capazes de configurar a cultura trazem também um traço do pânico, pois há um desamparo, inerente aos terrores deixados pela guerra, que exige outros caminhos psíquicos e sociais. Nesse ponto, a autora persegue, como antes, a materialidade correspondente à categoria agora abordada, resgatando aqui outro prisma do romantismo alemão – o de E. T. A. Hoffmann –, as obras de Egon Schiele e outra peça de Hugo von Hofmannsthal – A torre.

É importante notar, ainda, que o livro traz, do começo ao fim, um delicado viés feminista. Essa perspectiva surge na medida em que seus questionamentos apontam para os limites do patriarcado, no qual estavam fundados os pilares da cultura tanto no Império Austro-húngaro, como na ideologia nacionalista que buscava justificar uma guerra imperialista, cujas consequências terríveis reverberam ainda hoje.

Alessandra Martins Parente é psicanalista e pós-doutoranda pela FFLCH-USP.

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