Abertura evento de lançamento do livro O Racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise

Abertura evento de lançamento do livro O Racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise

Foto de Marcos Freire

   Foto de Marcos Freire   

Sou Noemi Moritz Kon[1], membro do Departamento de Psicanálise, e estou aqui na condição de co-organizadora do evento de 2012 e também do livro que estamos lançando hoje.

Agradeço primeiramente ao Instituto Sedes Sapientiae e à sua Diretoria, ao Departamento de Psicanálise, a seu Conselho de Direção atual, na figura de sua articuladora de eventos, Christiana Freire, e também àquele dos anos de 2011-12 (quando o evento aconteceu) e aos Conselhos de Direção subsequentes. Agradeço, ainda, aos membros da comissão organizadora do evento (Ana Carolina Neves, Hiliana Reis, Mara Caffé, Maria Auxiliadora Cunha Arantes, Maria Célia Malaquias, Maria Lúcia da Silva, Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi, Pedro Mascarenha), aos conferencistas de então, e que agora participam, com outros mais, como autores de nossa publicação, à editora Perspectiva que acreditou no projeto, às professoras Eliane Costa e Caterina Koltai, nossas conferencistas de hoje, e, às minhas companheiras organizadoras desse livro, Cristiane Curi Abud e Maria Lucia da Silva, a grande responsável por toda essa movimentação.

Estou muitíssimo feliz pela oportunidade de lançar O Racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise, livro que resultou do evento que junto protagonizamos aqui no Instituto Sedes Sapientiae, em 2012, e espero que o trabalho de hoje, efeito e ao mesmo tempo continuidade do trabalho anterior, seja tão rico e instigante como aquele que tivemos 5 anos atrás.

Desejo, ainda, que as 3 falas de hoje se reúnam às novas iniciativas que já estão ocorrendo no Departamento e no Instituto e que possam fertilizar longa jornada que, com sorte e empenho, nos levará a não mais recusar o fato evidente de que temos naturalizado o racismo e que assumimos a desigualdade, que é sua condição de existência, como se fosse, simplesmente, uma prerrogativa licitamente adquirida, que garante que poucos privilegiados estabeleçam e mantenham seu poder sobre tantos outros que, expropriados de seus direitos, foram tidos como mercadoria, simples moeda de troca.

Desejo, então, que esse encontro se torne tão somente mais um passo na necessária continuidade de nossos esforços, e não apenas para que seja feita a denúncia (evidentemente imperiosa), mas também para que assumamos as nossas responsabilidades e que, assim, insuflemos a reflexão, uma reflexão capaz de gerar, por sua vez,  ações que se contraponham aos efeitos nefastos do racismo contra o negro no Brasil, racismo que é base da civilização que temos edificado, que configura o processo de subjetivação de todos nós brasileiros e que conforma,  triste e inequivocamente, a psicanálise que temos construído.

Aprendemos, com Freud, como são altos os custos derivados dos processos de recalcamento e de recusa que aplicamos sobre nossa história individual e também coletiva; aprendemos, também com ele, que a escuta psicanalítica pode ser um instrumento de desalienação, com alta potência transformadora, e que por meio desse nosso trabalho de desocultamento das marcas de violência do passado e de recriação de nosso destino, poderemos ouvir a voz daquilo que foi eficientemente silenciado, permitindo emergir os afetos represados na forma da palavra e d
o pensamento. Seremos capazes, assim, de contribuir ativamente para desmontar o projeto ideológico que nos configura e pelo qual reiteradamente transformamos o outro em objeto para nosso terrível modo de obtenção de prazer.

Nunca é demais relembrar Freud de O mal-estar na civilização:
“O quê está por trás disso e que as pessoas gostam de negar, é que o ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo pode se defender quando atacado, mas, sim, que ele deve incluir, entre seus dotes instintuais, também um forte quinhão de agressividade. Em consequência disso, para ele o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo. Homo homini lúpus (o homem é o lobo do homem) ”. (S. Freud, O mal-estar na civilização – 1929-30, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p.57).
  
Os recentes episódios ocorridos em 11 e 12 de agosto, em Charlottesville, Virginia, Estados Unidos, elucidam perfeitamente a que se refere o alerta angustiado e tão contemporâneo feito por Freud. As imagens dos acontecimentos exibem a brutalidade da militância de extrema-direita, dos assim chamados supremacistas brancos, os alt-right (direita alternativa), que desfilaram soberbos com suas tochas acesas, com capacetes e escudos, com suas bandeiras confederadas e seus capuzes da Ku Klux Klan e que bradavam slogans xenófobos, homofóbicos, racistas, antissemitas e nazistas, em que proclamavam que só “a vida dos brancos importa” e que “não vão nos substituir”. Impossível, também, não ser tomada pela indignação ante a omissão abominável e insufladora do perigoso bufão eleito como presidente daquele país.
Quando as forças da cultura não são mobilizadas, como também nos ensinou Freud, poderemos constatar ainda uma vez mais que o bestiário se manifesta orgulhoso e abertamente, liberando o que há de pior no humano.

  




Impossível não se lembrar também – até porque estamos aqui para falar da bestialidade característica de nosso país –, do depoimento feito pela professora Diva Guimarães, na última FLIP (no dia 28 de julho), quando ela testemunhou publicamente aquilo que ouvira há mais de 70 anos, em seus 6 anos de idade, da boca da freira belga responsável pela instituição na qual foi colocada supostamente para estudar.

Diva Guimarães, neta de escravizados, sensibilizou não apenas os outros espectadores da conferência de Joana Gorjão Henriques e Lázaro Ramos, cujo tema era “A pele que habito”.

Seu depoimento foi divulgado em todas as mídias e viralizou na internet. Salva pela proteção e impulso à educação que recebeu da mãe, conta o que ouviu no colégio interno em que adentrou aos 5 anos, depois de ter sido recolhida pelas Missões da Igreja:

“Bom dia a todos, eu fiquei muito feliz quando você se referiu que a gente está numa plateia de maioria branca; porque, direi isso; e fiquei muito feliz quando você falou da parte (para, suspira, aplausos). Desculpem, quando você falou da parte da educação... [eu não pude deixar de me manifestar]. Eu sou de uma região do Sul – você já pode imaginar – do sul do Paraná, eu vim do interior do Paraná, lá do mato, estudar em Curitiba. Tive ontem a palestra das moças, sobre a mãe, que me tocou profundamente. Porque eu sobrevivi e sobrevivo hoje como brasileira porque tive uma mãe que fez de tudo, passou por tudo que era humilhação para que nós estudássemos. Fui (pausa), fui para um colégio interno aos 5 anos – ia completar – porque passavam umas freiras (para quem é bem do interior do mato, sabe disso, porque tinham um negócio das religiões chamado Missões). Eles passavam pelas cidades recolhendo crianças, como se fosse assim em troca de você ir para essa escola para estudar. Na verdade, a gente foi prá trabalhar. Então eu trabalhei duro desde os cinco anos. Sou neta de escravos. Aparentemente a gente teve uma libertação que não existe até hoje. (aplausos). Então, vou ser bem rapidinha e vou contar uma história que marcou a minha vida (não, eu não vou ser tão rápida assim), vou contar uma história que marcou a minha vida. Com 6 anos senti a diferença, amadureci com 6 anos. As freiras contavam a seguinte história: que Jesus (e eu demorei muito para aceitar esse tal de Jesus, porque eu era contra tudo e contra quem acreditava também). Então as freiras contavam a seguinte história: que Jesus, Deus, criou um lago, um rio, e mandou todos tomarem banho, banharem-se na água abençoada daquele maldito rio. As pessoas que são brancas – porque eram pessoas trabalhadoras e inteligentes – e chegaram antes nesse rio e tomaram banho e ficaram brancas. Nós, como negros, somos preguiçosos. (pausa... titubeio) E não é verdade! Esse país vive hoje porque meus antepassados... (choro, aplausos longos, todos de pé). Vou contar... então nós, como negros preguiçosos, chegamos no final, quando todos tinham tomado banho; o rio só tinha lama. Então, como a gente era preguiçoso, então nós temos a sola da mão e dos pés claras. Porque só conseguimos tocar com as palmas das mãos e dos pés. Por isso que temos as solas das mãos e dos pés claras. Isso era explicado. Ela contava esta história para dizer como a gente era preguiçoso. Isso não é verdade, porque senão a gente não teria sobrevivido. E eu sou uma sobrevivente pela educação, pela luta da minha mãe. ” (https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1430453270341189&id=119851898068006 )

Há quase 70 anos a professora Diva Guimarães se indigna com a narrativa que formulamos para nossa história. E assim como ela, se emocionam e choram a maior parte de nossa população. Mas não choram apenas – como foi importantemente ressaltado num depoimento feito no lançamento do livro que realizamos na Casa de Cultura Mario de Andrade – constroem, criam, divertem-se, vivem.... Os escravizados e seus descendentes não se estabelecem assim na posição de vítimas subjugadas, mas, sim, no lugar devido, ou seja, no lugar de sujeitos usurpados e que reivindicam seus direitos.

Não pude deixar de lembrar também – até porque, paradoxalmente, estivemos em sua casa – que a história que a professora Diva Guimarães ouvira da boca da freira belga supostamente responsável pela educação daquelas crianças internas do colégio que dirigia, não era diferente daquela outra narrativa que aparece em Macunaíma, romance de 1928, do próprio Mario de Andrade, que, ao juntar histórias oriundas do folclore de todo o nosso país, foi, justamente, consagrado por sua iniciativa de simbolizar e dar forma ao que passaria então a ser a nossa identidade nacional.
É assim que Mario de Andrade apresenta seu protagonista: Macunaíma, esse nosso “herói sem nenhum caráter”, “esse herói de nossa gente”, nasceu “No fundo do mato-virgem (...). O [filho da índia tapanhumas], “Era preto retinto e filho do medo da noite”. Uma criança feia.

É no quinto capítulo da obra, que Mario de Andrade configura sua mítica das três raças, das três raças que passaram a povoar nosso país.
Relembro a passagem para vocês:

“Uma feita o Sol cobrira os três manos duma escaminha de suor e Macunaíma se lembrou de tomar banho. (...) Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova cheia d'água. E a cova era que-nem a marca dum pé-gigante. Abicaram. O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas. Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do pezão do Sumé. Porém a água já estava muito suja da negrura do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando água pra todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze novo. Macunaíma teve dó e consolou: — Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz. Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifara toda a água encantada pra fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo dos Tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água santa. Macunaíma teve dó e consolou: — Não se avexe, mano Maanape, não se avexe não, mais sofreu nosso tio Judas! E estava lindíssima no Sol da lapa os três manos um louro um vermelho outro negro, de pé bem erguidos e nus”.

Irônico e crítico, ou não, Mario de Andrade em sua narrativa, assume, codifica, ratifica e reifica os mesmos valores que açoitaram e assombraram a professora Diva Guimarães e tantas outras crianças em nosso país. Uma narrativa que ainda hoje mostra os seus trágicos efeitos. É mesmo alarmante pensar que são esses os valores que dão o fundamento de nossa cultura, de nossa civilização. Tristes trópicos esses nossos.

Há mesmo muito a ser feito, e muito pouco fizemos até aqui.

E creio que essa é mesmo uma contribuição que uma psicanálise brasileira tem a obrigação de dar depois dos mais de 350 anos de escravização: escutar, testemunhar, dar palavra, reconhecer publicamente a dor, pedir desculpas pela barbárie infligida e buscar ativamente transformar o mundo em que vivemos. A psicanálise tem potência para colaborar nesse trabalho, basta que lembremos do efeito crucial das Clínicas do Testemunho entre nós.

Sabemos que o trabalho que desenvolvemos aqui hoje vai ao encontro da vocação e da missão desse Instituto, assim como de nosso Departamento, vocação e missão que membros e aspirantes a membro de nossa associação têm assumido ao dar corpo a novas iniciativas teórico-clínicas em parcerias com a Clínica do Instituto e também com instituições solidárias.

Isso é um alento, mas sabemos ainda há muito a ser pensado e feito. Tomara que hoje possamos dar mais um passo nessa direção.

Termino com as imagens das esculturas congeladas da artista plástica Nele Azevedo, e retomo as palavras de Lázaro Ramos (ator, escritor e conferencista da FLIP), em seu livro Na minha pele (São, Paulo, Companhia das Letras, 2017), que tanto se emocionou com Diva Guimarães:

“Ter passado a conviver com pessoas que não refletiam sobre o racismo no seu dia a dia me fez buscar argumentos para inserir esse tema nas conversas. Queria que elas percebessem o que para mim era tão claro. Queria dividir sem medo minha sensação de entrar num restaurante e ser o único negro no lugar. Queria mostrar as riquezas da cultura afro-brasileira, da qual eu tanto me orgulho e que é tantas vezes ignorada”.



[1] Noemi Moritz Kon é psicanalista, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, Mestre e Doutora pelo Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP e autora de Freud e seu Duplo. Reflexões entre Psicanálise e Arte, S. Paulo, Edusp/Fapesp, 1996, A Viagem: da Literatura à Psicanálise, São Paulo, Companhia das Letras, 2006 e organizadora de 125 contos de Guy de Maupassant, São Paulo, Companhia das Letras, 2009 e co-organizadora com Maria Lúcia da Silva e Cristiane Cury Abud de O racismo e no negro no Brasil: questões para a psicanálise, S. Paulo, Ed. Perspectiva, 2017. Professora do curso de pós-graduação: “Conflito e Sintoma: Clínica Psicanalítica” do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. 

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