Crônica de Daniela Danesi

Hoje é dia de crônica no Blog! Que o texto de nossa colunista Daniela Danesi, nascido de sua experiência clínica, política e teórica seja uma boa companhia a todos. Uma crônica que ilustra o que os movimentos de abertura às singularidades, às minorias e às diferenças têm produzido, para o bem e para o mal.

Esta pequena crônica nasceu de várias ressonâncias:
- das trocas fecundas realizadas no Grupo de trabalho e pesquisa do Departamento de Psicanálise “Generidades: Identidades, Gêneros e Desejo”.
- do assombro ao acompanhar tanto os movimentos de abertura na sociedade brasileira- com as políticas afirmativas que buscam dar voz às minorias - quanto à imensa violência com a qual uma parcela da sociedade responde buscando um retrocesso.
- da construção conjunta dos processos de simbolização que nascem do encontro analítico e que permitem, a cada um de nós, continuar criando o seu jeito possível de existir.

O Arco-íris de luto
Pensa no fim-de-semana. Lembra-se do evento grandioso, agora já consagrado como uma das maiores Paradas LGBTQ do mundo.
Como todo ano estava lá, mas desta vez havia escolhido saboreá-la, inicialmente, do alto. Queria ter uma visão de cima, queria olhar a extensão multicolor das pessoas que, em clima de festa, desfilavam pela avenida.
De repente, emocionou-se... Finalmente entendeu aquilo que sempre criticara: chamar esse evento de “dia do orgulho LGBTQ”. Sempre havia pensado: “Por que orgulho? Apenas somos o que somos, o que cada um deseja ser. Simples assim!”.
Lágrimas correm pelo seu rosto. Entende que o orgulho que está sentindo agora é a contrapartida das inúmeras cenas de humilhação que vivera na infância e adolescência, ao ouvir frases de escárnio ou reprovação, ao ver refletido no espelho do olhar do outro a sua suposta inadequação.
As sensações de alegria retornam...
Lembra-se de ter cantado e dançado no meio da multidão, enroladx na bandeira do arco-íris, juntando-se a tantxs que não querem ser classificadxs, definidxs, enquadradxs em um código do DSM.
Apenas cantaram e dançaram para que naquele dia de alegria, tantos outros pudessem se juntar e para que todo dia mais e mais ninguém precise se esconder.
Relembra, com orgulho, das conversas escutadas em que soube que várias empresas, naquele mesmo dia, haviam lançado um programa de incentivo para que a população trans pudesse ter acesso a postos de trabalho no mundo corporativo. Um pensamento irônico se impõe: “claro, nenhuma é brasileira!”.
De repente a angústia toma conta...as lágrimas mudam de tom, já não carregam a vivacidade do amarelo, laranja, vermelho, verde...mas o preto circunspecto da dor e do luto.
A notícia, recém-chegada na mensagem de whatsapp, de que o irmão de uma amiga havia sido encontrado morto, com sinais de espancamento paralisa a sua alegria.
Relembra que era um irmão adotivo, acolhido na adolescência pela família da amiga após ter sido expulso de casa ao se assumir homossexual. Tantos anos depois um novo e definitivo linchamento!
Pensa, com emoção, nesses tantos Brasiis que habitamos e se pergunta quando a bandeira do arco-íris poderá tremular, por aqui, sem uma faixa preta a atravessá-la?

Daniela Danesi é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do curso Clínica Psicanalítica Conflito e Sintoma e membro do Grupo de trabalho e pesquisa “Generidades: Identidades, Gêneros e Desejo”.

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