Homenagem a Victor Guerra

À convite do Blog do Departamento Eloisa T. de Lacerda faz uma linda homenagem ao psicanalista uruguaio Victor Guerra, que nos deixou em junho de 2017.

Homenagem a Victor Guerra

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada,
aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

                                                        Carlos Drummond de Andrade



No dia 27 de junho de 2017, uma terça-feira, o psicanalista uruguaio Victor Guerra nos deixou! E é assim, com essa falta ainda se fazendo ausência, que falo, em primeiro lugar, do sofrimento da amiga! Sofre também a psicanalista. Sofre duplamente sua companheira, a psicanalista Carla  Metzner. E muitos amigos uruguaios, franceses e brasileiros, com essa perda tão prematura, marcada ainda no reconhecimento da importante contribuição de Victor Guerra à psicanálise.

Quando estive em seu consultório (junto a uma equipe interdisciplinar que tive a oportunidade de conhecer ainda no Brasil), pude perceber a enorme quantidade de livros de arte que habitavam seu espaço clínico, tão grande quanto a quantidade de livros mais diretamente ligados à psicanálise. Digo isso porque a arte permeia todo o seu trabalho, os textos literários não são algo a “analisar”, eles dialogam com a clínica, com a teoria, escutando-se uns nos outros e dando lugar a uma troca real de saberes. Por isso a referência ao nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, na epígrafe desta homenagem que lhe faço agora.

O sofrimento está em mim, uma psicanalista que muitas vezes escutava nas palavras de Victor Guerra a teoria que subjaz à prática clínica a que me dedico. Falo de uma interlocução que se manteve ao longo de dez anos, e que tanto enriqueceu o trabalho que continua, tanto na clínica quanto no trabalho psíquico de cada um de nós, em nosso luto. Fica-nos o consolo da  possibilidade de poder falar dele e de seu legado tão contemporâneo homenageando-o através de alguns poetas e escritores.

Com sua criatividade nos manejos da clínica, com sua consistência teórica e sua enorme generosidade, Victor se manteve sempre disponível, comigo e com toda a nossa equipe de parcerias, para trocas sobre esses fazeres que se reúnem sob o nome de Clínica da Constituição do Laço. É com essa capacidade de “dis-pôr-se à escuta que acolhe” o que exponho como uma compreensão de que o psicanalista tem que poder se permitir tocar no corpo do bebê, não “só” com a intenção de organizá-lo em sua funcionalidade nascente, como também com a intenção de – ao posturá-lo frente a frente com o corpo e o rosto da psicanalista – emprestar à mãe o quantum de infiltração libidinal que movimenta a cena clínica nesse atendimento conjunto, quando esta não pode ainda pulsionalizar seu filho/a, nesse tempo de extrema urgência do psiquismo nascente do bebê.

Enquanto ouvia com atenção nossos relatos transdisciplinares - de toda a equipe que podia participar, em tempo real - desse trabalho simultâneo com corpo e psiquismo, Victor nomeou co-construção esse trabalho. Uma construção com, uma construção conjunta, a partir das interações – mesmo que ainda muito precoces – do bebê com seu cuidador primeiro, geralmente sua mãe. Esses pais, avós ou cuidadores de abrigo que, por motivos os mais diversos, buscam ajuda, escuta e atenção a esses cuidados na clínica.

Victor dizia que um trabalho sobre as terapias psicanalíticas com os bebês, as crianças muito pequenas e seus pais, vai muito além daquilo que eu chamava de recursos possíveis, uma vez que recurso pode ser entendido somente como um amparo, um refúgio, e mesmo uma receita, uma saída. Por isso, em nossas trocas, precisamos explicitar a trajetória de nosso pensamento clínico, os relatos das formas de condução, e nos dispormos também a escutá-lo: Eló, voce mostra con muita calidade e cuidado o processo analitico possibel con uma crianza e uma mae con muitas dificultades. Gosto muito de la forma como voce comenzo a captar los “pequenos pedazos de unidades revestidas de sentido” , el amanecer del lenguaje en relacion al desejo, como una forma de nacimento a la vida psíquica.  Sim, Victor! É mais que um “recurso”, é um “trabalho analítico”, e é também ele que, com a arte, pode assimilar sua falta em ausência.

Victor nos falava sempre, e com ênfase, da importância que devemos dar à sensorialidade do bebê e da criança pequena nas nossas cenas clínicas conjuntas com eles e seus pais. Nesse discernimento, o silêncio fazia muito sentido para ele, e isso era compartilhado por muitos de nós. Era também assim, com muita atenção, que falava de densos e importantes conceitos da psicanálise, deixando-se atravessar pela arte dos poetas, escritores, cineastas e equipes de curta metragem e permitindo-nos captar o “sublime” do humano, mesmo que em sua feição mais “lamentável”, que tão bem ele nos oferecia nas palavras do poeta Octávio Paz.

Fez o filme “Indicadores de Intersubjetividad”: 1ª parte.  0-12 m: “Del encuentro de miradas al placer de jugar juntos” e 2ª parte. 6-12 m  “Del desplazamiento en el espacio al placer de jugar juntos”,  descortinou conceitos como “infiltração libidinal”, “objeto tutor” – como se construye y se sostiene desde la intersubjetividad y el papel de los objetos tutores (que es una idea personal) como sosten de la continuidad y no como defensa de la angustia de separacion – dentre alguns outros e com eles nos possibilitou algumas “leituras da clínica” quando podemos nos deixar tomar por uma atenção flutuante perceptiva (como dizem Cesar e Sarah Botella) para adentrarmos os primórdios da vida psíquica em tempo real dos pais com seu bebê. E era precisamente sua sensibilidade e abertura ao novo que dava lugar e tempo a discussões clínicas, quando ele ou um de nós trazia um fragmento clínico em nossas rodas de conversa.

Idealizador da Declaração de Cartagena, já não pôde comparecer ao Congresso da FEPAL para apresentá-la, preocupado que estava com a “situação atual” de tantas crianças rotuladas de Transtorno do Espectro Autista. Sua tese de doutorado: O Ritmo e os Indicadores da Intersubjetividade e o proceso de Subjetivação do Bebê sobre o ritmo e a lei materna, embora ainda não publicada - assim como sua extensa obra - já nos veio sendo apresentada em muitos de seus textos generosamente compartilhados conosco mesmo antes de suas publicações.

Victor esteve sempre entre nós nos Encontros Nacionais e Internacionais da ABEBÊ – Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê, e foi assim que o conheci. Ele já “andava” lá por Porto Alegre junto com alguns dos membros fundadores da ABEBÊ como Regina Orth de Aragão e Salvador Célia. Também tem um longo trabalho relacionado à primeira infância desenvolvido no espaço da Creche, de sustentação aos cuidadores e atendimento de pais e crianças. Agora, após ter nos deixado, ainda continua entre nós. Penso que irá nos fazer lembrar de poetas ou de filmes quando pensarmos em algum conceito metapsicológico ao nos depararmos com nossas situações clínicas de cada dia…

Sou homem: duro pouco

e é enorme a noite.
Mas olho para cima:
as estrelas escrevem.
Sem entender compreendo:
Também sou escritura
e neste mesmo instante
alguém me soletra.
Irmandade, Octávio Paz


Victor Guerra – psicólogo e psicanalista, membro da A.P.U  (Associação psicanalítica do Uruguai), membro e correspondente da ABEBÊ  (Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê).

Eloisa T. de Lacerda é fonoaudióloga e psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise e do Departamento Psicanálise com Crianças do Sedes Sapientiae, membro fundador e da atual diretoria da ABEBÊ  (Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê).

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