As outras línguas da psicanálise (sobre o evento “Questões sociais e políticas na história da psicanálise”)

As outras línguas da psicanálise 
(sobre o evento “Questões sociais e políticas na história da psicanálise”)

Nos anos 70, quando foi fundado, o curso de psicanálise do Sedes era muitas vezes chamado de  “alternativo”. Era um termo criticado, pois colocava-nos em uma oposição desnecessária a outras formações. Mas, de fato, fomos a primeira alternativa de formação fora da IPA. Estar no Sedes sempre  teve a ver com o desejo de conexão com uma psicanálise ligada a movimentos de vida e criação, inserida na luta por um mundo melhor e pelos direitos humanos. Naquele momento pensava-se em uma psicanálise militante e procuravam-se as relações entre marxismo e psicanálise. Havia um grupo de psicanalistas argentinos que fundara o movimento Plataforma, procurando estruturar um pensamento sobre uma clínica que se articulava com questões políticas e sociais. Muitos desses argentinos juntaram-se a nós.

Acreditávamos que a simples escolha de um lugar regido pela Carta de Princípios que pregava a luta pela igualdade de direitos e a busca de um mundo melhor nos preservaria do a-político das IPAs nos idos anos 70.

Ao me inscrever no evento “Questões sociais e políticas na história da psicanálise: ontem e hoje” sabia que estava indo ao encontro de pensadores dos quais tinha ouvido falar, mas não os conhecia. Com exceção da russa Sabina Spielrein, que graças à pesquisa de Renata Cromberg tem gerado publicações importantes, e  E F. Fanon que li a partir do meu trabalho sobre o preconceito, em documentários para a Universidade Federal de São Carlos.

No evento estavam sendo lançados dois livros da editora Annablume, um de Otto Gross , Por uma psicanálise revolucionária, e uma coletânea , A psicanálise e os lestes, organizada por Paulo Sérgio de Souza.

Percebi que nossa história dentro do Sedes não nos isentava do fato de que armadilhas históricas levaram a alienar todo um pensamento que foi excomungado já nas origens.
Saber da vida e pensamento de Otto Gross me encantou.  Eu já ouvira seu nome, mas não podia imaginar sua importância. Fui pesquisar e vi que Otto Gross também não está presente na biografia de Freud realizada por Emilio Rodrigué. Não consta do índice onomástico, embora seja uma biografia que conta histórias que outras não contam e/ou contam pouco. Renato Mezan, em Freud Pensador da Cultura, refere- se a O. Gross quando historia a relação entre Freud e Jung. [i]

Pensei em Rodrigué porque Otto Gross e Emílio poderiam ser grandes amigos. Os dois viviam seus amores e paixões de forma ardorosa sem se deixar condicionar pelas normas sociais. Eram anarquistas e assim construíram e/ou desconstruíram suas vidas. Mas, Otto Gross viveu de 1877 a 1920. Rodrigué não tinha sequer nascido.

Durante o evento, à medida que Marcelo Checchia ia contando sobre a vida de Otto Gross, mais eu ia me encantando. Já aos 16 anos foi internado, com delírios provocados por over-dose.  Os internamentos marcam sua vida. Publicou vários artigos sobre neurologia antes de descobrir a psicanálise. A psicanálise lhe deu elementos para defender a libertação sexual. Passou a freqüentar uma comunidade anarquista na Suíça, onde todos ficavam nus e pregavam o amor livre. Como Oswald de Andrade, defendeu o matriarcado. Dialogou teoricamente com Freud, que polemizou com suas idéias.

Por indicação de Freud interna-se  no hospital psiquiátrico Burghölzli, em um “estado paranóide” e começa um tratamento com Jung que se encanta com suas ideias sobre o amor livre - seu envolvimento com Sabina Spielrein ficava justificado.  Gross termina fugindo e Freud e Jung o diagnosticam: demência precoce.  Gross perambula pelas estradas, trabalha em cafés, escreve textos teóricos preciosos. Assim como Rodrigué que recebia seus pacientes em um quiosque na praia de Itapoã, Gross, sem eira nem beira, atendia em cafés.

Gross continuou escrevendo.

Freud e Jung concordam: Gross só pode causar um grande dano à causa psicanalítica...
Morre nas ruas, enlouquecido.

Todo este relato fiquei sabendo por Marcelo Checchia que tem um lindo texto introduzindo Otto Gross no livro Por uma psicanálise revolucionária.

Impressionou-me Emílio não ter conhecido Otto. Impressionou-me não conhecermos a obra de Otto Gross. Impressionou-me perceber o quanto acabamos nos fechando no que já conhecemos.

Na continuidade do evento, Renata Cromberg nos contou os avatares terríveis da psicanálise na Rússia e Paulo Sérgio Souza nos falou do ofício de traduzir. Ofício que considera político.

Há outras mesas por vir, no dia 9 de junho. Vamos escutar sobre F. Fanon e falar de E. Fromm e das clínicas públicas dos primórdios da psicanálise. 

Esse trabalho pioneiro de resgate dessa psicanálise que é tão desconhecida para nós vem sendo feita por um grupo de jovens. Que acabam sendo também pioneiros ao nos apresentar outras línguas da psicanálise.  

Essa abertura para aquilo que, no decorrer da história da psicanálise, foi excomungado, resgata, em nosso Departamento, uma postura de abertura para o que nunca foi “oficializado”. Para aquilo que foi menosprezado e excomungado.  Resgata nosso sonho de uma psicanálise que se insere no mundo e que só pode ser desalienante.

Miriam Chnaiderman é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e professora do Curso de Psicanálise. Ensaista e documentarista dirigiu vários documentários. É doutora em Artes pela ECA-USP.



[i] Mezan,R. Freud pensador da cultura, Companhia das Letras, SP pp 316-317

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