Evento "Questões Sociais e Políticas na História da Psicanálise: ontem e hoje"

No evento “Questões sociais e políticas na história da psicanálise: ontem e hoje” que ocorreu no último dia 3 de março, um dos convidados, Marcelo Checchia, trouxe a baila a obra e a história de Otto Gross, seus estudos psicanalíticos e seu posicionamento político para lá de polêmico para os dias atuais, que dirá para sua época, final do século XIX, início do XX. Sua fala nos fez refletir sobre as seguintes questões: o que motiva a intensificação de um interesse pela iluminação de certas obras anteriormente obscurecidas? E, antes, o que motivou esse obscurecimento?

A história de Otto Gross tem vários aspectos em comum com outros excluídos, como Adler, Stekel, Tausk, Rank e Ferenczi. Considerado inicialmente promissor e inteligente, é visto posteriormente desviante a partir de suas posições. Gross formulou propostas que aproximavam a Psicanálise com as ideias de Nietzsche. Através de uma nova ética pautada em Nietzsche e no método psicanalítico, escreveu “A psicologia do inconsciente e a filosofia da revolução”. Sustentava que revolucionários precisavam fazer análise para a mudança das marcas do autoritarismo que portavam, e que a psicanálise poderia ser realizada em bares, espaços públicos.

Ele se propunha analisar os efeitos do patriarcado ou de maneira geral do autoritarismo na psique humana. Gross via a psicanálise como um movimento revolucionário ao abrir perspectivas aos problemas da cultura colocando Freud como um questionador de preconceitos e tabus. Lugar este que de certa maneira foi negado por Freud, por exemplo, quando afirma “somos médicos e queremos permanecer médicos” respondendo a Gross a respeito da dimensão política que este confere à psicanálise. Para Freud sua revolução era científica.

Internado algumas vezes por uso excessivo de drogas, Gross é analisado por Jung em sessões extensas (10 a 14 horas) em um modelo de análise mútua da qual Jung afirma ter se beneficiado muito.  Experimentações do método analítico, com todo o conjunto de excessos que se apresentaram.  Ferenczi posteriormente também propôs o método da análise mútua e foi questionado quanto a essa inovação.

A proposta do evento nos faz refletir sobre as questões e as escolhas feitas em determinadas épocas, com vista à instituição de certo grupo e de certas ideias. O desejo de pertencimento e reconhecimento por um determinado extrato social implica, mais das vezes, exclusões, expurgos e banimentos na busca de proteção para atingir seus objetivos. 

“Nada de novo na frente ocidental” parece ser uma boa expressão para esse modo de operar a constituição de grupos, tribos, sociedades, estados, etc. A instituição de algo implica em estabelecer limites entre os que estarão dentro e os que estarão fora e o objetivo é criar uma identidade através da identificação entre os seus membros, buscando coesão, inúmeras vezes conseguida, à custa da construção de um inimigo a ser combatido. Característica bastante constante e encontrada em graus variados de rigidez na história humana.

Talvez nos espante que esses processos, frequentes em outros âmbitos, ocorram no movimento psicanalítico, que desenvolveu um saber sobre o funcionamento inconsciente, sobre os efeitos do recalcamento, da recusa, da rejeição, sobre rivalidade e agressividade, sobre a transferência. Esses acontecimentos da história do movimento psicanalítico nos mostram os limites que os movimentos de constituição apresentam para dar expressão e consequência às suas próprias descobertas e ao conhecimento adquirido.

A trajetória singular de Otto Gross nos faz pensar que certas ideias, formas de relação e convívio social podem levar muitas décadas para serem implementadas e assimiladas, e exigem um trabalho permanente. Mas cabe observar também o fascínio que essas figuras outsiders despertam em nós talvez pela ousadia de suas propostas e pela tentativa de aplicação destas, ainda que em condições adversas.

Esta é a importância dessa busca pelo pensamento dos banidos e excluídos. Amplos aspectos do potencial do próprio saber psicanalítico desenvolvido por eles poderem ser  resgatados e analisados na sua condição de campos a serem desenvolvidos.  Será esse o caso ainda hoje? 

A apresentação de Renata Cromberg sobre a “Psicanálise na Rússia Soviética e a luta de Sabina Spielrein” retrata o percurso de uma paulatina e contínua limitação da possibilidade da psicanálise ser exercida, no caso por razões de estado, até ser banida através das experiências de Sabina Spielrein. O que nos espanta talvez seja o encontro com a visão totalitária e arbitrária de uma sociedade que pretendia ser libertária.  As questões com que nos encontramos hoje são da mesma natureza na busca incansável por construir um modo de convivência que contemple as diversidades e mantenha o direito de todos à vida e a participação social. 

Paulo Sérgio de Souza Jr em “Psicanálise e os Lestes”, trouxe de uma maneira provocativa e bem humorada, a questão da linguagem. Esta pode se constituir em mais um fator para criação de resistência e não aceitação do outro, por causar estranhamento pela sua diferença e estrangereidade. Fatores estes que podem levar a exclusão.

Cleide Monteiro é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae, professora e supervisora do curso de Psicanálise e membro do Projeto Laborar (atendimento a trabalhadores adoecidos pelo trabalho) do mesmo Departamento.

Claudia Ribeiro é psicanalista em formação no curso de Psicanálise do Departamento e participante do Aprimoramento na Clinica do Sedes Sapientiae.

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