Coluna “Livros da minha Vida”

Psicanálise mais além...

Após anos de ininterruptas leituras, algumas por simples diversão, outras por deleite com a literatura, às vezes por dedicação aos estudos, os livros foram se acumulando na biblioteca da casa. Nesta casa, os livros são considerados um objeto de especial destaque, ou melhor, aqui eles alcançaram estatuto de “quase-sujeitos”. E embora vários destes “quase-sujeitos” estejam acostumados a transitar pela sala de visitas ou a se acostar pelos quartos, além dos que vivem na cozinha, ou dos que moram no banheiro, a maior parte deles, uma vez manuseada, e por ventura devorada, repousa meio esquecida nas estantes da pequena biblioteca.

Ao longo dos anos, porém, em certa estante, foram se reunindo aqueles livros que causaram algum impacto em um ou outro dos habitantes da casa. Esta estante poderia ser chamada aquela “dos livros de minha vida”.

Até hoje eu jamais me detivera por tanto tempo a observar cuidadosamente os livros que foram colocados ali por mim. Surpreso, percebi que eles fazem uma cronologia de quem eu me tornei, contam uma história do que vivi desde a juventude, explicam de maneira significativa os caminhos que trilhei até estar onde estou agora.

Acredito que por isso não foi simples destacar um destes volumes da estante, depois que Blog do Departamento sugeriu que escrevesse um comentário a respeito de um deles...

Quando me postei diante desta estante, logo saltaram a meus olhos os vinte e quatro volumes em espanhol das obras de Sigmund Freud, um conjunto todo verde e esgarçado, editado pela Amorrortu, e que de oito anos para cá passaram a ser gradualmente ladeados pela multicolorida edição brasileira de Companhia das Letras. Embora ninguém mais consiga visualizar, eu bem sei que nesta prateleira, entre as obras completas, se imiscuem à maneira de meu “prontuário” outros tantos diários invisíveis de duas análises pessoais, além do registro dos anos de diálogo em uma fecunda supervisão.

E foi toda esta composição de livros visíveis e invisíveis que primeiro pediu passagem, fazendo-me reconhecer a maneira definitiva com que o famoso tripé” – análise pessoal/supervisão/estudo – determinou a minha vida. Tal composição foi fundamental para meu processo de fazer-psicanálise.

Entretanto, renunciei penetrar este interior, tão vasto e tão explorado pelos psicanalistas, quando a lombada vermelha do mais recente protagonista desta seção especial da pequena biblioteca atravessou meu olhar e me fez lembrar que, ao colocá-lo na prateleira inferior, desejei tê-lo lido antes de qualquer um sabendo que então meu nascimento teria sido outro.

Pressuporemos que o leitor possa lançar mão da psicanálise e fazer dela pano de fundo contrapontístico para, assim, nos atermos às marcas que este livro yanomami me causou, no ponto exato em que dialogava com este saber psicanalítico que me determinou. Realçaremos dois ou três aspectos provocados por A Queda do Céu[1], narrativa biográfica de Davi Kopenawa, fruto da organização e da escrita de conversas travadas ao longo de quarenta anos de amizade com o antropólogo francês Bruce Albert.

Em uma das primeiras frases que iniciam a enorme conversa com Albert, Kopenawa se dirige ao amigo dizendo: “Seus professores não o haviam ensinado a sonhar, como nós fazemos. Apesar disso, você veio até mim e se tornou meu amigo”. 

Kopenawa distingue, entre os viventes, de um lado, as pessoas comuns – “Elas apenas vivem, dormem e comem; e só. Preparam as penas de suas flechas e vão caçar. Plantam brotos de bananeira em suas roças e nada mais. Seu pensamento é fechado e curto. O mesmo acontece com os brancos que não estudam.” (p. 460) – e, de outro lado, aqueles que se dedicam aos estudos, dentre eles os xamãs. Eis o contraponto: consideraremos aqui os xamãs como primos mais antigos dos psicanalistas, uma vez que ambos desejaram tratar dos outros e precisaram realizar um processo de formação que os preparasse para isto.

É surpreendente como o estudo empreendido pelos xamãs yanomami se aproxima das análises pessoais em que mergulham os psicanalistas: se o sonho é via régia tanto da formação “didática” do analista quanto no cotidiano de pensar a implicação transferencial nas análises que ele conduz, os yanomami vão mais além ao considerar os sonhos como sua principal estratégia cognitiva. “Nós, Yanomami, quando queremos conhecer as coisas, esforçamo-nos para vê-las no sonho. Esse é o modo nosso de ganhar conhecimento. Foi, portanto, seguindo esse costume que também eu aprendi a ver [...] Não temos leis desenhadas em peles de papel e desconhecemos as palavras de Teosi [2]. Nossos antigos não tinham livros. As palavras de Omama e as dos espíritos penetram em nosso pensamento com a yãkoana e o sonho. E assim guardamos nossa lei dentro de nós, desde o primeiro tempo [...] Eu não vi as coisas de que eu falo no papel dos livros nem em peles de imagens. Meu papel está dentro de mim e me foi transmitido pelas palavras [que os espíritos me deram em sonho].” (p. 465, 390, 455, 74)

Kopenawa constata que há diferença entre a consistência do fazer-saber de sua tribo em relação àquela dos brancos: para os ameríndios, o conhecimento é uma experiência intrinsecamente corporal em que palavra e coisa não se separam, enquanto que o modo de conhecer dos brancos, no limite, mantém uma exterioridade que os obriga a organizar seu saber em uma dimensão necessariamente representacional. Ele faz o diagnóstico: “Os brancos são engenhosos, é verdade, mas carecem muito de sabedoria […] Apesar de seu engenho para fabricar mercadorias, o pensamento de seus grandes homens está cheio de esquecimento […] Suas palavras não parecem se firmar por muito tempo em suas mentes. Se escutarem muitas delas sem marcar seu traçado, elas logo desaparecem de seu pensamento […] As crianças dos brancos têm de aprender a desenhar suas palavras torcendo os dedos desajeitados por muito tempo e com os olhos sempre cravados em peles de imagens.” (p. 65, 383, 376, 457)

A estratégia cognitiva yanomami acredita que pode conhecer a natureza das coisas porque o que abre o acesso a ela é um elemento catalisador que vem da própria natureza: o pó de yãkoana a ser bebido. Assim, o objeto será conhecido por um acontecimento – uma visão, uma palavra, um combate – interior ao próprio investigador. As palavras são coisa vista/vivida. É tal imanência não-reflexiva que confere caráter de verdade inesquecível ao conhecimento.

“Eu não aprendi a pensar as coisas da floresta fixando os olhos em peles de papel. Vi-as de verdade [no sonho], bebendo o sopro de vida de meus antigos com o pó de yãkoana que me deram. Foi desse modo que me transmitiram também o sopro dos espíritos que agora multiplicam minhas palavras e estendem meu pensamento em todas as direções […] No silêncio da floresta, nós, xamãs, bebemos o pó das árvores yãkoana hi, que é o alimento dos espíritos da floresta, os xapiri. Estes então levam nossa imagem para o tempo do sonho. Por isso somos capazes de ouvir seus cantos e contemplar suas danças de apresentação enquanto dormimos. Essa é a nossa escola, onde aprendemos as coisas de verdade […] Estudando sob a orientação de nossos xamãs mais velhos, não temos a menor necessidade de olhar para peles de papel! É dentro de nossa cabeça, em nosso pensamento, que essas palavras de espírito se ligam uma à outra e se estendem sem parar, até muito longe.” (p. 76, 460)

Eis o “modo de fazer crescer o pensamento” dos yanomami: com yãkoana e os espíritos da floresta, é o corpo que, através dos sonhos, pensa e aprende – guardando as palavras que viram. Orientados pelos xamãs mais antigos, tem-se que vencer o medo de beber o sopro do pó de yãkoana, transmissor da força que vem das árvores da floresta. O poder de yãkoana “faz morrer nossos olhos e abre nosso pensamento, [pois] com os olhos de vivente não seria possível ver realmente as coisas.” (p. 458)

Para “sonhar de verdade”, primeiro, é preciso morrer-se, ficar em "estado de fantasma”. Quando morre-se sob efeito de yãkoana, os xapiri descem para aquele que sonha. “O corpo fica deitado na rede, e os xapiri levantam vôo com nossa imagem […] Nos fazem virar fantasma e levam nossa imagem para longe, para combater os espíritos maléficos ou para consertar o peito do céu [...] Assim podemos ver terras muito distantes, subir para o peito do céu ou descer ao mundo subterrâneo. Destes lugares, trazemos palavras desconhecidas, para que os habitantes de nossa casa possam ouvi-las. Esse é o nosso modo de ficar sabedor, desde sempre”. (p. 137, 458)

Isso posto, destacaremos um último aspecto que funda esta concepção radical em que a razão e o conhecimento se constituem exclusivamente na noite do sono, através dos processos oníricos. Os yanomami crêem que tendo lhes sido colocado o sonho dentro por Omama, o demiurgo, eles possuem o valor do sonho no mais fundo de si. Mas a palavra desconhecida trazida pelo sonho não é escutada conforme uma já imaginada representação do desconhecimento; a palavra chega estrangeira para que aconteça naquele que sonha um outro desconhecimento que não existia antes. Este “outramento” faz cultura na tribo. Portanto, esta capacidade onírica que realiza o conhecimento não se reduz ao pessoal, não produz mais individuações no indivíduo, não faz mais sujeito no sonhador. Para os yanomami, o Eu não é narcísico, é cosmocêntrico.

Diz Kopenawa: “Sem virar outro, mantendo-se vigoroso e preocupado apenas com o que nos cerca, seria impossível ver as coisas [...] Os brancos ignoram tudo das coisas da floresta, pois não são capazes de vê-las/conhecê-las realmente. Só sabem da floresta as linhas de palavras que vêm de sua própria mente. Não param de fixar seu olhar sobre os desenhos de suas falas colados em peles de papel e de fazê-los circular entre eles. Desse modo, estudam apenas seu próprio pensamento e, assim, só conhecem o que já está dentro deles mesmos. Por manterem a mente cravada em seus próprios rastros, os brancos ignoram os dizeres distantes de outras gentes e lugares.” (p. 141, 455)

E, particularmente, a respeito dos sonhos: “Os brancos quando dormem, só vêem no sonho o que os cerca durante o dia. Não sabem sonhar de verdade, pois os espíritos não levam sua imagem durante o sono. Nós, xamãs, ao contrário, somos capazes de sonhar muito longe. As cordas de nossas redes são como antenas por onde o sonho dos xapiri desce até nós diretamente [...] Os brancos têm muitas antenas e rádios em suas cidades, mas estes servem apenas para escutar a si mesmos. Seu saber não vai além das palavras que dirigem uns aos outros em todos os lugares onde vivem. As palavras dos xamãs são diferentes. Elas vêm de muito longe e falam de coisas desconhecidas [...] Para nós, Yanomami, a política é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos. Por isso não conseguem entender nossas palavras.” (p. 460, 390)

Sob o impacto da leitura, guardei este belo livro escolhendo a prateleira-base da estante dos livros de minha vida, como se fosse fazer o fundo de tudo que viesse estar acima dele. Então, pensava: Ah! Qual psicanálise faríamos hoje se Freud tivesse sido não apenas um vienense que experimentou os efeitos da cocaína, mas também um estrangeiro que, tendo desviado ao sul até a Amazônia em sua viagem à América do Norte, descobrisse a ancestralidade xamânica que bebe o pó das árvores de yãkoana hi?

Mauricio Porto, abril de 2018


[1] Kopenawa, Davi & Albert, Bruce, A Queda do Céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Todas as citações foram extraídas desta publicação. 
[2] Teosi vem do português “Deus”.

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