Tentativa de quê?

Tentativa de quê?
Bruno Esposito, Laís Lima, Alessandra Balaban, Natalia Cruz Rufino

Falamos a partir de uma experiência clínico-institucional com adolescentes e seus familiares, que são, muitas vezes, encaminhados após uma tentativa de suicídio. Recebemos pais e jovens em estado de urgência, criando-nos um impasse constante. No caso desta urgência ser aceita, passamos a tomar medidas como a intervenção medicamentosa, internação domiciliar ou hospitalar e a realização de diagnósticos precipitados. Por outro lado, uma postura analítica demasiadamente passiva e não responsiva pode lançar pacientes e familiares em um perigoso vazio, colocando em risco a vida desses adolescentes.

Tomaremos aqui a adolescência como um trabalho intenso do psiquismo. Este período da vida, para Freud1, irrompe “como se escavasse um túnel numa montanha” (p. 195) - ao entrar nesse túnel perfurado de ambos os lados, torna-se necessário sair, renascer de outro jeito. Entra-se como um, mas nunca é possível sair do mesmo modo. O adolescente busca uma nova língua, um modo novo de dizer de si; ocorre que as autenticações que ele encontra para essa nova língua tendem, em nossa atualidade, a qualificar qualquer manifestação como sinal de uma doença.

A crise do adolescente não se encerra nele mesmo. À medida que os adolescentes fazem a travessia, os pais podem ou não se reenviar para a própria história desejante, para sua conjugalidade, sexualidade e sua própria adolescência, trazendo aí mais uma delicada passagem.

Aquilo que Eriksson2  denominou de “moratória do adolescente” – momento de suspensão temporal para a satisfação futura – é o insuportável na contemporaneidade. Vigora a crença de que é possível e necessária a satisfação de todas as solicitações desses jovens. Solicitações que são substancializadas: inúmeros pedidos como piercings, tatuagens, celulares e roupas são atendidos imediatamente, sem questionamento, anulando assim a metonímia intrínseca ao desejo (raramente há uma pergunta a respeito do por que e do para quê o jovem afirma querer estes objetos). Não há uma relativização da palavra - a palavra não é escutada como metáfora - e assim a expressão “vontade de morrer” é tomada ao pé da letra e não, por exemplo, como uma tentativa de se saber o lugar que se ocupa no desejo do outro.

Nesta lógica imediatista, há uma tentativa incessante de suprir a falta, sem conseguir positivá-la como aquilo que promove o desejo, o crescimento e a capacidade de se virar na vida (“meu filho vai ter tudo que não tive, não quero que passe pelo que passei”). Do lado do adolescente, a rapidez em conhecer, o fluxo acelerado das informações e a intolerância com aquilo que escapa incita-o a uma “desinscrição do impossível”³ , mantendo o engodo imaginário de que tudo se pode. Quando o limite se impõe, a reação dos jovens é explosiva, impulsiva e compulsiva.

Outro aspecto, bastante perceptível em nossa clínica, diz respeito ao borramento da hierarquia familiar. Os pais aparecem como pares, como iguais, sentem-se premidos a exercer um papel de extrema tolerância, promovendo um ambiente marcado pela liberdade, compreensão, permissividade e intimidade excessiva. Esse extremo favorece o seu avesso: excesso de presença e de ausência se alternam em vários momentos. Ora os jovens são protegidos e investidos maciçamente, como único projeto de vida desses pais,  ora são abandonados à própria sorte, “a vida ensina”, dizem eles.

Esta dicotomia também fica evidente no que diz respeito à produção de um saber a respeito dos filhos: ou se sabe tudo (“meu filho é meu melhor amigo”) ou não se sabe nada (várias mutilações no corpo que sequer são percebidas). Uma pesquisa israelense recente contrapôs relatos de mães e adolescentes sobre a presença de comportamentos suicidas, evidenciando o desconhecimento contundente das mães sobre esses comportamentos. Os jovens relatam três vezes mais a presença desses atos em relação a suas mães4.

Encontramo-nos com pais que reconhecem a turbulência deste período apenas quando a suposta tentativa da morte bate em sua porta; a morte aparece como única solicitação que não pode ser atendida. A partir daí, delegam ao profissional que sancione e revele o que se passa com seu filho, numa espécie de despossessão de saber acerca dos mesmos. Isto vai ao encontro da crença social de que se é possível encontrar uma verdade universal a respeito do sofrimento psíquico e de que este saber está fora da família, na internet, na medicina, na ciência. Há uma terceirização do saber, que é massificado o tempo todo. Neste sentido, o sintoma que deveria ter a função de fazer singularidade e ser formação de compromisso passa a ser pertencimento grupal, formação de parceria.

Assim, encontramos uma banalização por parte dos adolescentes do risco que as tentativas de suicídio representam. Estes adolescentes passam a pertencer a grupos dos que se cortam, que ingerem medicamentos em excesso, que tentam se matar. A tentativa de suicídio aparece como uma solução identificatória possível, uma possibilidade de parceria que é próprio da adolescência.

A partir da constatação de que a questão identitária é fundamental na adolescência e se mostra especialmente problemática nesses pacientes, os dispositivos grupais foram se tornando uma das principais ferramentas de intervenção na nossa clínica. Desde a formalização do contrato de tratamento, a proposta grupal tem sido bem acolhida tanto por parte dos jovens como pelos pais – porque estes também participam de grupos de família. A estratégia de grupos tem se mostrado fundamental na aderência ao tratamento, diminuindo sensivelmente os casos de abandono.

Nos grupos, observamos que o discurso sobre o suicídio rapidamente se desdobra em outras temáticas, que podem fazer referência a assuntos mais complexos como conflitos familiares, términos de namoro, questionamentos sobre a existência, assim como assuntos aparentemente muito triviais como marcas de celular, cor de cabelo, piercings, roupas de marca, discussões sobre política e gostos musicais. Nessa fluidez discursiva, os adolescentes vão assumindo uns em relação aos outros diferentes posições: parceiro, conselheiro, autoridade, piadista, experiente ou aprendiz.

“Eu tenho certeza de que sou muito insegura, isto é da minha depressão”, diz Ana. “Como você pode ter tanta certeza assim se você é insegura?”, pontua Maria. “Tentei me matar tomando vários comprimidos, mas a minha mãe descobriu porque achou as cartelas em cima da mesa”, diz Maria em outro momento. “Se você quisesse se matar mesmo, você não deixaria pistas, você já percebeu que você quer bronca o tempo todo?”, questiona Laura. No movimento grupal, se restitui o valor metafórico da palavra quando, por exemplo, a morte ou a psicopatologia passam a ter outros sentidos e um dos aspectos primordiais da contundência dessas intervenções diz respeito ao fato delas serem protagonizadas pelos próprios pacientes, ganhando lugar cada vez mais de pares e de autores do próprio saber (o saber não está mais só com os pais ou os médicos).

A posição dos adolescentes em relação aos pais também vai sendo modificada. De plenos, parceiros e amigos, como bem ilustra a frase de Carlos (“amor é só de pai e mãe”), as figuras parentais passam a ser questionadas, adquirindo um novo estatuto. Aparecem suas falhas, seus impasses, seus outros desejos... E Carlos passa a fazer amigos e namorar. Os grupos de família, por sua vez, tem o valor de restituir aos pais seu lugar de autoridade, do estabelecimento de limites, da importância de frustrar, de assumir a impossibilidade de ser tudo para o filho. Não é raro percebermos como, com o tempo, esses pais se recolocam no mundo de outra forma, voltando a trabalhar, interrogando sua vida conjugal, etc.

No contexto da adolescência, a evolução favorável de muitos desses casos nos faz questionar: a tentativa é de quê? Trata-se realmente de suicídio e do mortífero ou de tentativa de ato relacional, de parceria, de valorização da falta, da capacidade de suportar o sofrimento, de fazer furo no saber absoluto? Manter a vivacidade desses questionamentos nos parece o combustível necessário a essa clínica, para que a adolescência possa ser vivida como uma crise que produza múltiplas saídas e significações.

1 FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Editora Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 7, pp. 129-251.
2 ERIKSON, E. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1976.
3 LEBRUN, J. Um mundo sem limite. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2004.
4 ZALSMAN, G. et. al. Maternal versus adolescent reports of suicidal behaviors: a nationwide survey in Israel. In Eur Child Adolesc Psychiatry, 2016, dez., 25(12), pp. 1349-1359.

Alessandra Balaban é psicóloga e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. É psicóloga do CRIA, onde atua desde o início da instituição.

Bruno Esposito é psicanalista, psicólogo do CRIA-UNIFESP e especialista em “Saúde Mental e Saúde Coletiva” pelo Departamento de Medicina Preventiva e Social da UNICAMP.

Laís de Lima é psicóloga (PUC/SP), psicanalista e especialista em Psicologia da Saúde (UNIFESP) e em Psicanálise e Linguagem (PUC/SP). Aprimoramento em entrevistas iniciais (UNIFESP)

Natalia Cruz Rufino é psiquiatra e coordenadora do programa de atendimento a adolescentes do CRIA/UNIFESP.

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