Seriam os objetos mediadores capazes de burlar o trabalho do negativo presente no funcionamento psíquico dos pacientes-limite?

Em 16 de abril o Departamento de Psicanalise realizou  no Sedes Sapientiae o evento  "ANNE BRUN - MEDIAÇÃO E COMPOSIÇÃO GRUPALAnne Brun é uma das mais importantes pesquisadoras do uso de objetos mediadores em tratamentos psicanalíticos. 

Camila Junqueira escreveu um ótimo texto sobre o evento a convite do Blog do Departamento.

Confiram!!




Seriam os objetos mediadores capazes de burlar o trabalho do negativo presente no funcionamento psíquico dos pacientes-limite?


Camila Junqueira

Que analista nunca ficou perplexo diante das atuações de um paciente? Rupturas abruptas, silêncios prolongados e vazios, confusões com horários e pagamentos, ausências frequentes, recados nas secretárias eletrônicas ou no Whatsapp, entre outras angústias transferidas sobre o enquadre. Com a ampliação dos limites da analisabilidade a partir da década de 60, muito se produziu para ampliar nossa compreensão acerca do vasto campo das patologias-limites, que de forma geral descarregam no corpo e em atos os traumas precoces que não conseguem metabolizar. São grandes os avanços metapsicológicos no que tangem a compreensão dos traumas primários e dos processos de simbolização - movimento que tenho me dedicado a estudar há mais de uma década - mas ainda cabem muitas questões, especialmente as ligadas ao manejo clínico desses casos.

Foi nesse contexto que me inscrevi no evento realizado no Sedes Sapientiae em 16 de abril último pelo Departamento de Psicanálise, cuja convidada era Anne Brun da Universidade de Lyon 2, uma das mais importantes pesquisadoras do uso de objetos mediadores em tratamentos psicanalíticos e que em 2013, junto com Bernard Chouvier e Rene Roussillon,  publicou um livro  sobre o tema[i]. Anne Brun realizou uma instigante apresentação de suas ideias, ofertando-nos sementes para refletirmos sobre o manejo de um amplo espectro de pacientes não apenas nas instituições, mas também em nossos consultórios. Para ela a utilização de mediadores em processos analíticos grupais é especialmente importante no tratamento de traumas precoces que estão na base das psicoses, das patologias do agir violento, da antissociabilidade grave, do autismo e da psicossomática, situações que estão no limite da subjetividade. Mas, me pergunto, se tal trabalho pode trazer inspiração para o amplo espectro de patologias-limites.

Segundo Anne Brun, do ponto de vista histórico, esses mediadores passaram a ser incluídos nos processos analíticos grupais diante da insuficiência dos dispositivos baseados na linguagem verbal, sendo utilizados há várias décadas por terapeutas ocupacionais e arte terapeutas sem uma sustentação teórica articulada com a teoria psicanalítica. Até há pouco tempo atrás os psicanalistas não tinham participação direta nos grupos onde esses materiais eram utilizados, estando presentes apenas nas supervisões. Para ela, assim como para Bernard Chouvier e René Roussillon, o psicanalista deve participar dos grupos, pois a ênfase não será mais sobre os produtos analisados à posteriori e sim sobre o processo de utilização desses objetos mediadores na sessão. Afinal, o que faz deles objetos mediadores é o fato de estarem submetidos à associatividade e à transferência, fatores fundantes do processo analítico. E quando a associatividade verbal está pouco desenvolvida a atenção do analista recai sobre a associatividade não verbal, o que Roussillon chama de mimo-gesto-postural, e que no grupo vai aparecer através das relações interpessoais e da utilização dos objetos mediadores.

A ideia de objetos mediadores é herdeira direta do conceito de ‘meio maleável’ introduzido por Marion Milner. Pesquisando um pouco mais sobre esse conceito[ii] percebe-se que o ‘meio maleável’ pode ser definido como uma substância concreta através da qual as impressões sensoriais ganham sentido. Assim, o ‘meio maleável’ pode ser argila, papéis, tintas, etc., mas também o enquadre e o analista, seu corpo e sua psique. Roussillon (1991)[iii] procura aprofundar a definição do conceito atribuindo-lhe certas características como indestrutibilidade (sobrevivência à agressividade necessária à separação), extrema sensibilidade, capacidade de se transformar indefinidamente, disponibilidade incondicional e vida própria. Essas duas últimas características podem parecer um tanto contraditórias, mas na realidade, o ‘meio malevável’ pode ser compreendido como a mãe suficientemente boa que ajuda a estabelecer progressivamente as experiências de desfusão e desilusão necessárias à formação do sujeito. E tal como a mãe, o ‘meio maleável’, constituído na sessão por objetos mediadores, vai exercer a função de para-excitação transformando a quantidade em qualidade e a força em sentido!

O que Anne Brun nos apresenta tem como pano de fundo uma ideia desenvolvida por Roussillon de que a transferência, sobretudo a transferência dos aspectos mais primitivos, se dá sobre a totalidade do enquadre[iv]. No trabalho que ela relata há ainda a potente ação do grupo. Haverá, portanto, uma constelação transferencial formada pelos membros do grupo, pelos analistas, pelo ‘meio maleável’, e pelas relações que se produzem. O objeto nunca será mediador em si mesmo, sempre dependerá das relações em que se insere e das simbolizações que ele possibilita através dessas relações. Os aspectos sensoriais dos objetos mediadores estimulam uma memória arcaica e permitem a expressão do mais primitivo, das experiências catastróficas que vão se reatualizar pela materialidade do ‘meio maleável’ e que acontece dentro do contexto grupal composto por outros pacientes e também pelos analistas. Nesse sentido, as percepções contratransferências dos analistas ganham relevo, e são o eco daquilo que é lançado pelos pacientes – para Anne Brun o que se produz na utilização do ‘meio maleável’ são mensagens (sensoriais) a espera de tradução (em palavras). Contudo, nem toda contratransferência aparece sob forma de pensamento, parte dela, aparece no corpo dos analistas. Anne Brun denomina essa transformação de ‘transposição sensorial’.

Em sua apresentação Anne Brun relata também trechos de um trabalho com um grupo de três pacientes e três analistas, cujos progressos em termos relacionais foram perceptíveis na vida destes pacientes.  O paciente autista após três anos de trabalho passa a desenhar figuras humanas e ao final do grupo consegue participar de todas as atividades da residência terapêutica. Anne Brun aponta mudanças evidentes na reflexividade desses pacientes, em sua capacidade de se sentir, de se ver e de se escutar, concluindo que nesse grupo em que os pacientes a princípio não possuíam um sujeito realizaram uma apropriação subjetiva de si mesmos.

Para os que desejam compreender melhor a delicadeza deste processo é interessante assistir sua apresentação que está disponível do site do Departamento[v], bem como ler ser artigo, publicado em 2015 pela Revista de Psicopatologia Fundamental, em que ela relata o trabalho com um grupo de crianças psicóticas[vi].

Resta ainda a questão da utilização dos objetos mediadores com pacientes-limites. Em que medida esse trabalho pode ser potencializador do processo analítico com pacientes que possuem fortes cisões? Já sabemos que essas patologias denominadas de ‘limites’ e que se situam aquém das neuroses tendem a se expressar no corpo e nos atos, sendo também denominadas de ‘patologias do agir’. Poderia os objetos mediadores operar como uma espécie de captadores dessas angústias que recaem no ato e por vezes transbordam sobre o enquadre por ausência de simbolização? O processo do fazer na sessão dentro de uma relação intersubjetiva onde há investimento por parte do analista, olhar, nomeação e afetos, poderá ativar o processo de simbolização, da ligação dos traços sensoriais à pulsão? Anne Brun baseia seu trabalho com objetos mediadores na ideia da associatividade como princípio central do processo analítico. Porém, se acompanhamos os desenvolvimentos de André Green acerca do funcionamento do pacientes-limites, encontraremos a descrição da ‘posição fóbica central’[vii] como a presença de um certo tipo de trabalho do negativo  no psiquismo desses pacientes impedindo justamente ‘a arborescência das cadeias associativas’; um trabalho do negativo que realiza um desinvestimento do processo simbolizante. Seriam os objetos mediadores capazes de burlar tal negatividade e permitir a retomada dos processos de simbolização? Só a pesquisa clínica poderá nos responder a essa questão.




[1] Brun, A.; Chouvier, B.; Roussillon, R (2013) Manuel des médiations thérapeutiques, Paris: Dunod
[1] http://theses.univ-lyon2.fr/documents/getpart.php?id=lyon2.2010.rey_b&part=368267
[1] ROUSSILLON R. (1991), Un paradoxe de la représentation: le médium malléable et la pulsion d’emprise, in Paradoxes et situations limites de la psychanalyse, Paris, Presses Universitaires de France, p. 130-146.
[1] https://reneroussillon.com/cadre-dispositif/le-langage-du-cadre-et-le-transfert-sur-le-cadre/
[1] ttp://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?mpg=07.08.03&acao=ver&id=87&pg=
[1] http://sbpdepa.org.br/site/wp-content/uploads/2017/03/A-Posi%C3%A7%C3%A3o-F%C3%B3bica-Central.pdf


Camila Junqueira é psicanalista, doutora e pós-doutora pelo Instituto de Psicologia da USP e  membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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