Racismo e simbolização

No último dia 9 de junho realizou-se no Sedes Sapientiae a segunda parte do evento Questões sociais e políticas na história da psicanálise: ontem e hoje, evento que se propôs a resgatar na história da psicanálise, autores que se mantiveram esquecidos como Otto Gross, Sabina Spielrein, Frantz Fanon, Erich Fromm entre outros, mas que trabalharam no campo social e político e promoveram mudanças sociais e subjetivas significativas. Fanon,por exemplo, médico psiquiatra negro, nascido na Martinica, foi um importante pensador sobre as questões raciais. A convite do Blog Cristiane Abud, uma das organizadoras do evento, apresenta um lindo texto sobre o tema.

Confiram: 



Racismo e simbolização


Cristiane Curi Abud

Há alguns anos tenho me aproximado da problemática do racismo e o negro no Brasil e tem me intrigado o tremendo mal estar que o tema desperta em todos os lugares onde é discutido. Alguns colegas nomeiam essa mal estar como vergonha, culpa ou raiva pela violência exercida contra os negros. Essas palavras traduzem para mim apenas parte do mal estar que insiste de forma tão violenta que atinge meu corpo em sensações de enjoo, taquicardia e tensão muscular, sensações sobre as quais tenho muita dificuldade de pensar. 

Por isso, levanto a questão de quais seriam os efeitos do racismo no processo de simbolização. Bem, podemos definir a simbolização como tornar psiquicamente presente um objeto ausente.

Ao vivenciarmos uma determinada experiência somos corporalmente afetados por seus estímulos sensoriais (visual, olfativo, auditivo, tátil e gustativo). A percepção desses estímulos demandará trabalho ao psiquismo. Ocorre então uma passagem da sensação propriamente dita para sua respectiva imagem psíquica, que carregada de afeto, constitui o que chamamos de representação-coisa. O passo seguinte à significação afetiva da experiência é poder falar sobre ela, transformando-a em representação de palavra.

Basicamente, este constitui o processo intrapsíquico da simbolização. Mas se a simbolização requer que se represente o objeto na sua ausência, cabe questionar a função que o objeto cumpre neste processo.
Neste sentido, retomamos o conceito de objetos transicionais que incidem na área intermediária da experiência, abrindo caminho para a jornada do bebê desde o puramente subjetivo até a objetividade.

Os objetos ofertados ao bebê são artefatos da cultura na qual a família se insere. Importa aqui notar que a produção cultural não é ingênua, ela carrega aspectos sócio históricos, institucionais, econômicos e ideológicos. Carregam e revelam as alianças inconscientes acordadas pelo grupo familiar do bebê, inserido no grupo social maior, alianças que determinam o que fará parte do discurso e da experiência daquele grupo e o que não fará parte.

Foto 1. Esta foto foi tirada por um fotógrafo negro chamado Chichico Alkimin (1886-1978) e está exposta no Instituto Moreira Sales. Podemos receber seus estímulos visuais, percebê-la e fazer a passagem que se realiza da sensação para a imagem psíquica. No entanto, ao revelar o negativo das imagens deixadas por Chichico, o Instituto encontrou outras revelações a partir dos negativos das fotos.



Foto 2. Neste caso, o estímulo sensorial foi negativado, e aquilo que seria apenas uma sensação, insumo para a experiência estética da vida psíquica, aparece como uma coisa da qual se pretende livrar. Dentro do longo processo de simbolização de uma experiência, que aqui descrevemos, ataca-se seu primeiro passo, a percepção. Percepção de que ali tem seres humanos, sem os quais, a foto revelada seria outra, mas dela não podem fazer parte. Corta-se assim o mal pela raiz. Através de um mecanismo reconhecidamente perverso de ataque à percepção recusa-se que essas pessoas façam parte da cena social. Elas estão ali, sabemos que estão ali, mas agimos como se não estivessem. Tal aliança limita a possibilidade de canalização psíquica da experiência e de palavras para dizer, a violência toma outros rumos e retorna através de atuações.  



Num instituto de formação em psicanálise como o Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae essas alianças tendem a se repetir e selecionamos colegas, autores, teorias, eventos, publicações que fazem parte do nosso espaço transicional, espaço no qual tentamos simbolizar as experiências vividas na clínica, seja ela pública ou privada. Assim como selecionamos aquilo da cultura que não fará parte do nosso espaço. Essas definições e determinações se dão no detalhe, por exemplo, em como esse auditório organiza seus móveis estabelecendo já um tipo de relação entre oradores e plateia, neste crucifixo da parede, na forma como nos vestimos, no café que servimos nos intervalos, nas decisões de como investir os recursos financeiros do departamento, nos textos que utilizamos nas aulas e espaços de estudos, etc.  Se observarmos o perfil demográfico de nosso departamento, perfil dividido em classe, gênero e raça, não demoraremos a notar que nossos cursos são caros, somos uma maioria de mulheres, na plateia pelo menos, e somos uma maioria de brancos.

Corta-se assim o mal pela raiz. Só que não. A resistência dos movimentos negros no Brasil, este evento e tantas outras iniciativas que vem sendo tomadas em diferentes âmbitos da nossa sociedade propõe-se a rever o que Freud chamou de recusas da percepção, Ferenczi chamou de desmentido e Figueiredo de desautorização da percepção. É preciso enquanto psicanalistas, reconstruir nossa História, através da atividade de ligação do mal estar produzido a cada encontro no qual tentamos tomar consciência, rever e resignificar o pacto social do qual somos todos signatários. É preciso sustentar o mal estar para transformá-lo em representação, elaborações e simbolizações. 

Franz Fannon, Deivison Nkosi Faustino, Neusa Santos, Isildinha Batista, Mariele, Maria Lucia Silva, Anne Egidio, Maria Aparecida Miranda, Eliane Costa, Néia Marques, Maria Celia Malaquias e tantos outros amigos e colegas vieram para dentro da cena, do nosso espaço transicional que hoje, 9 de junho de 2018, pode, quem sabe, favorecer a nomeação, representação e simbolização de algumas das tantas experiências violentas que recusamos ao longo da nossa História. Quem sabe possa ser mais um espaço a favorecer que mais colegas venham para dentro da cena, ainda que para isso precisemos instituir bolsas de estudo no nosso Departamento.

Nas palavras De Fanon: “O olho não é apenas espelho, mas espelho retificador. O olho deve nos permitir corrigir os erros culturais.”

Cristiane Curi Abud é professora afiliada da Universidade Federal de São Paulo e professora do curso de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae. É Psicanalista Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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