Texto sobre a mesa - A LÍNGUA ERRANTE / O APÁTRIDA - Evento Deslocamentos

Nos dias 04 e 05 de maio de 2018 aconteceu pelo Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae o evento Deslocamentos, organizado pelo coletivo Escutando a Cidade O tema pretendia abranger não só  os deslocamentos como conceito psicanalítico,mas como viagem, mudança de povos e/ou indivíduos de um lugar para outro e como experiência de descentramento do sujeito. 

A convite do Blog do Departamento Maria Laurinda R. Souza escreveu um lindo texto sobre a mesa  A LÍNGUA ERRANTE / O APÁTRIDA.

Confira:


Corpos nômades. Línguas errantes


Maria Laurinda R. Souza

“Passar pelo silêncio e fazer dele sua vida, por esse ponto a que o escritor sempre volta, é ir a um limite da memória, lugar inaugural de um saber que perpassa sua obra: o saber do perdido, a volta aos lugares inóspitos do vazio, para viver com a despossessão, a partir da aprendizagem da incompletude, da não-totalização, que ele atravessa com o impacto de uma escrita, a dele, que é também o testemunho de algo que existe para além do burburinho e do vozerio desse século dos excessos que aponta para o sucesso ilusório da totalização”.[1]

Se começo este comentário com a citação de Ruth Silviano Brandão (2005) a respeito do trabalho de Pascal Quignard, é porque a escuta sobre “A língua errante e/ou o apátrida”,  me remeteu diretamente a esse escritor, ele também, assim como outros nomeados pelos palestrantes ,  marcado pela perda, pelo abandono e pelas catástrofes do século XX – guerras, totalitarismos, nacionalismos, fragmentações, êxodos, despossessões, genocídios, campos de extermínio -,  e que encontrou na arte – especificamente na música - e na literatura uma forma de sobrevivência. Significativamente,  afirmava ele que ”a mão que escreve é, antes, uma mão que escava a linguagem que falta, que tateia em direção à linguagem sobrevivente, que crispa, enerva-se, que, desde a ponta dos dedos, mendiga.”

Língua errante, à busca de sustentação para deslocamentos compulsórios na tentativa de não se imobilizar no vazio, de não enlouquecer. É, portanto, esta vertente, a da possibilidade de transformar a perda da língua materna ou o exílio voluntário ou forçado, na busca de uma língua outra que se torna  obra  literária, que me interessa privilegiar.

Na abertura deste encontro, Nelson introduz o tema propondo uma aproximação entre  a língua errante e o exílio: Será o exilado o apátrida da língua? É de Bárbara Cassin a afirmação de que a marca do exílio é a transformação da relação com a língua; o exílio desnaturaliza a  língua materna e se superpõe a outras duas perdas: o universo das nossas certezas e a certeza do nosso universo.  E se Paul Célan, citado por ele, nos impacta com a declaração de que sua língua materna é a dos assassinos de sua mãe, é porque nele o exílio e o embate com a língua se conjugam, produzindo sofrimento, mas também, criação.

O exílio, diz Caterina Koltai, sempre esteve presente no âmago da criação literária. Como se o escritor precisasse ser, por definição, um deslocado, afastado de seu país, cortado de sua língua materna. Mas, o que pode significar a perda da língua materna? Em sua fala, retoma um texto escrito anteriormente “A língua exilada”, em que se refere a dois autores húngaros: Sandor Márai e Imre Kertesz,, ambos testemunhas involuntárias da catástrofe, ambos capazes de transformar o vazio em capacidade de pensar.

Márai, teve sua obra proibida na própria terra e, ao emigrar para os EUA, em 1948, esquecida e só relembrada após o suicídio em 1989. Ao emigrar perdeu sua terra e seus leitores; perdeu as palavras. Pagou caro por sua liberdade. A língua materna permanecendo como uma ferida presente e sensível.

Um de seus grandes temas foi a amizade. O amigo era para ele uma testemunha, um consolo. Sua dedicação ao tema da amizade é uma das razões pelas quais Caterina Koltai, diz gostar tanto dele. Já em seu texto “Entre psicanálise e história: o testemunho” (2016)[2], Caterina também afirmara que “em situações extremas, quando se é submetido a tratamentos desumanos, algo pode colaborar para manter o fio da vida: a relação de amizade que se tece entre aqueles que estão submetidos ao mesmo destino e lutam pela vida lado a lado” (p.27).

Imre Kertesz, admirador de Márai, nobel de literatura em 2002, foi, ainda adolescente, prisioneiro dos campos de concentração nazistas. Ao sair do campo, com 16 anos, poderia ter emigrado, mas decidiu ficar, só começando a escrever 10 anos depois, também como uma forma de sobrevivência. Em sua obra mais conhecida Sem Destino,  trata da frágil experiência do indivíduo contra a arbitrariedade da história e do poder político. Quando em 1956, muitos decidiram abandonar a Hungria, ele mais uma vez resolveu ficar e continuar a escrever em sua língua materna. Tornou-se, dessa forma, o exilado em seu próprio país, o escritor do impossível. Escreveu para esquecer ainda que as lembranças nunca tenham desaparecido.

Márcio Seligmann-Silva também inicia sua fala convocando a literatura em sua aproximação com a psicanálise: de certo modo, diz ele, a literatura é uma espécie de porteira da cripta – conceito caro a Abraham e Maria Torok  que nos anuncia um impossível de simbolização – sendo que o que habita esse túmulo é o “esquecido” da própria história.  É esse esquecido, continua Márcio, que, muitas vezes,  se encontra na obra de Kafka e nos obriga a ouvir a voz da natureza esquecida, revelando-nos os traumas do indivíduo moderno. É  ao impossível que Kafka se refere quando fala sobre o surgimento de sua literatura, mencionando a  “impossibilidade de  não escrever, a impossibilidade de escrever em alemão, a impossibilidade de escrever de maneira diferente”. E, depois, acrescenta: “a impossibilidade de escrever”.

Nessa “literatura do desloucamento”, assim nomeada por Márcio, que marcou o século dos genocídios, muitos artistas como Kafka vão embaralhar os arquivos,  revelar segredos e romper fronteiras, fazendo-os explodir; o artista quer destruir os arquivos que funcionam como máquinas de destruição.  Bispo do Rosário é lembrado por ele como exemplo, no Brasil,  de um artista anarquivador. Portador de todas as categorias de segregação -  negro, pobre, louco -, rompeu, com sua arte, o exílio que lhe foi impingido.

Jean Améry, outro escritor dessa literatura de testemunho,  mescla, em seu ensaio sobre a tortura,  a análise objetiva da realidade desse “procedimento” com breves relatos subjetivos sobre sua própria experiência. Passou por vários campos de concentração e suicidou-se em 1978 tendo sucumbido àquilo que pode ser considerado como vivência  de desamparo absoluto frente a um poder absoluto – o do torturador. A tortura, disse ele, é o evento mais horrível que um homem pode guardar dentro de si; quem foi torturado permanece como tal. Permanece, para sempre, apátrida. Para sempre condenado ao exílio.

Com outro olhar, Vilém Flusser, que teve todos seus parentes mortos em campos de concentração, constrói uma obra positivando a apatricidade e o exílio, transformando o que poderia ser da ordem do abandono e da exclusão num ato de conquista e liberdade. Para ele, é preciso romper com os laços que nos enraízam e nos cegam e adquirir uma liberdade política e eticamente responsável com o próximo e com suas ligações.  “Pátria, para mim, diz ele, são os homens pelos quais tenho responsabilidade”. 

É uma ética da responsabilidade que se coloca em cheque no depoimento-poema  “Antigamente fomos muitos” de Almires Martins, indígena do povo guarani, e com o qual Seligmann-Silva encerra sua participação nesta mesa.

Se ele iniciou sua fala remetendo-se a Kafka, é com uma referência a ele que Peter Pál Pelbart termina, depois de citar um diálogo imaginário entre Edward Said e Mahmud Darwich, poeta palestino, que encontrou na poesia uma forma de superar o exílio sofrido aos 6 anos, em 1948.

Said: Se eu morrer antes de você, deixo como legado o impossível
Darvich: Está muito longe o impossível?
Said: A uma geração de distância
Peter: É quase Kafka que diz: Há fé, muita,  muita esperança, uma esperança infinita, mas não para nós.

Diálogo que remete a um possível do impossível. Um possível sempre adiado? Onde cada geração poderia dizer não ser ainda o momento?  Não foi essa a impressão que seu discurso nos deixou. Pois, depois de fazer uma aproximação entre o sofrimento do povo judeu e do povo palestino, ambos vítimas de condições históricas tão similares, e se perguntar como escapar da autovitimização competitiva, traz no desenvolvimento que  segue aberturas para o impossível.  Inicialmente pela compreensão de uma estratégia política que mantém essa racionalidade de extermínio do “outro” – palestino, mantendo-se, assim, o poder do Estado judaico e a justificativa para ocupação das terras palestinas,  expulsão de seus moradores e para a recusa à existência de um Estado Palestino. Depois, destacando a importância de que um povo pudesse re-conhecer a narrativa do outro aproximando suas culturas e a legitimidade de suas respectivas alteridades. Proposta também sustentada pelo movimento do próprio Edward Said.

Mas, o discurso mais importante para se pensar essas questões vem da África, enfatiza Pelbart, vem de um pensador negro, Achille Mbembe, em sua obra “Crítica da Razão Negra”. Nela enuncia que a constituição do pensamento europeu sobre o humano é indissociável do surgimento do negro como personagem racial, o que poderia se aplicar também a Israel com relação ao palestino ou ao muçulmano, diz Pelbart.  Judeu, palestino, negro – cada um carrega sua cota particular de desterro. Entre o negro e o judeu há um não-dito; ambos são vítimas da mesma racionalidade, ambos são marcados pela diáspora.

O conceito de raça serviu para diagnosticar a degradação e déficit ontológico de uma população outra ; eles são os menos-ser, necessários para fazer o reconhecimento dos que são.  Capitalismo, nacionalismo e racismo estão intimamente conjugados; somos herdeiros dessas operações.

É de Mbembe a potência da seguinte afirmação: “assim como se pode postular uma vontade de poder, deve-se postular uma vontade de comunidade, mas uma vontade descolonizada”; as diásporas, os deslocamentos, os exílios contemporâneos, podem criar novos fundamentalismos, mas, também, podem criar novos territórios – afetivos e sensíveis.

Retomo, para finalizar este comentário, uma das falas de Caterina Koltai: “Os recursos da literatura, assim como os do inconsciente se reinventam sem cessar na medida em que o poeta é sempre um pouco um profeta, na medida em que seu ouvido se abre no limiar da emergência da linguagem, lá onde chamamos as coisas antes de nomeá-las.”
É na esperança dessa reinvenção incessante que se podem criar deslocamentos possíveis para o que é da ordem do impossível, da ordem do horror.

P.S. Termino com um duplo agradecimento: a Gisela que me fez o convite para escrever para o Blog do Departamento  comentando esta mesa e, a Caterina, Márcio e Peter  pela generosa apresentação de suas falas e pela inspiração a buscar, nos autores citados, suas produções, o que me produziu muito encantamento.
   


[1] Brandão, R. S. “Pascal Quignard: escrever é ouvir a palavra perdida”. www.scielo.br/scielo.php

[2] Revista de Psicologia da USP, www.scielo.br/pusp


M. Laurinda R. Souza é professora do curso de Psicanálise pelo Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae. Autora, entre outros, de Violência, Casa do Psicólogo, 2005 e Vertentes da Psicanálise, Pearson, 2017.

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