Crônica de Maria Laurinda Sousa - Viagem à Cuba em outubro de 2018 - Diário de Viagem

Nossa colunista Maria Laurinda de Sousa publica uma linda crônica sobre sua viagem à Cuba em outubro de 2018 - Diário de Viagem. Cuba revisitada.

Confiram abaixo:

Diário de viagem. Cuba revisitada

Nenhum homem é uma ilha; inteiramente isolado,
todo homem é um pedaço de um continente,
uma parte de um todo...E por isso não perguntai:
Por quem os sinos dobram; eles dobram por vós.
John Donne. Meditação XVII

Cheguei a Cuba, no meio da noite, depois de um dia de atraso devido à perda da conexão com o voo que partiria do Panamá. Aeroporto praticamente vazio. Espaço físico descuidado. Pouco acesso a informações. Falta de internet.  Um guarda prestativo ajudou-me no câmbio da moeda. Dinheiro necessário para pagar o primeiro taxi disponível.

Son treinta y cinco pesos, diz o jovem motorista descendo de um carro antigo, mal conservado, com as portas pintadas em cores diferentes.
Faço as contas rapidamente – são trinta e cinco euros - e começo a discussão. Em Cuba há que negociar o valor da corrida. Sempre.
Es mucho.  
Su hotel está lejos de aqui. Es tarde. Usted no encontrá por menos.
         Pondero o cansaço e o desconhecimento do lugar.
treinta?
Está bien

Sigo viagem segurando-me no banco e rezando para que o sacolejar barulhento  do carro não termine num desmonte de todas as peças.

Depois de um tempo em Havana você se acostuma e até acha pitoresca a viagem nos carros antigos e com pouca manutenção, nos cocotaxis ou bicitaxis que cruzam “velozmente” as avenidas e vielas da cidade antiga. Estes últimos,  aliás, as formais mais eficientes de transporte para pequenas distâncias.

Tenho ainda três dias para conhecer a cidade antes  do início do Congresso sobre Subjetividade e Trabalho: entre o mal-estar e o bem-estar. Título sugestivo, já que minha permanência em Havana também foi marcada por momentos de oscilação entre o mal e o bem-estar.

O ônibus turístico deixa-me no Armazém S. José. É lá que se reúnem  artesãos e pintores. Trabalhos delicados de madeira, joias semipreciosas de prata, camisetas pintadas com motivos cubanos e frases que,  vou reencontrar  nos muros da cidade e nos painéis das avenidas: falas de José Martí, Che Guevara e de Fidel, todas elas alusivas ao valor da Revolução. Numa delas: “O Bloqueio é um genocídio”.

Sim, isso é visível.

A cidade padece com o racionamento de alimentos e com a falta de manutenção: casas com telhados caindo, encanamentos improvisados, fiação atravessando muros, pessoas coabitando espaços extremamente pequenos com portas e janelas escancaradas para aliviar o calor que neste inverno chega a 36 graus. Crianças brincam com bolas improvisadas e alheias às águas que escorrem pelos canos sem esgoto e se empoçam nas ruas. Alheias, também, à história que marca a crise econômica que afeta esta ilha.

 Sim, há muitas faltas visíveis, mas todas as crianças têm acesso à educação, embora a qualidade já não seja a mesma. Muitos professores resolveram abandonar o ensino porque o ganho mensal – 20 pesos – é inferior a qualquer prática comercial ou turística – agora parcialmente liberada pelo Regime. Todos têm emprego, mas os salários, garantidos pelo Estado, não são suficientes para a manutenção mensal.  A saúde é um modelo para o mundo e motivo de orgulho, mas começam a surgir falta de médicos especialistas e dificuldade em adquirir equipamentos de ponta. Sim, há a literatura, mas a falta de papel tem dificultado o acesso a livros impressos.

No Congresso os especialistas cubanos vão apresentando repetidamente as causas maiores de preocupação nos serviços de saúde e seguridade social: o envelhecimento da população, a baixa taxa de natalidade - atribuída à dificuldade econômica -, e os conflitos decorrentes da mudança e abertura política da Ilha; hoje, cerca de 42% da população realiza alguma atividade privada com um ganho superior ao oferecido pelos empregos sustentados apenas pelo Estado.

Quando comento com uma amiga a preocupação e surpresa com as condições sociais e de moradia, ela me pergunta: mas que imagem você tinha da ilha?

Imagem? Sou atravessada por uma avalanche delas. Minha juventude marcada pelas narrativas da oposição à ditadura de Fulgêncio Batista, liderada por Fidel, Cienfuegos e Che, em Sierra Maestra. As frases e poemas de José Martí, herói da independência (“um grão de poesia basta para perfumar todo um século”). O  livro A Ilha de Fermando Morais referência dos movimentos de esquerda na época da ditadura. Meus amigos exilados em Cuba quando a opção de ficar era o risco de prisão e tortura. O filme de Wim Wenders sobre Buena Vista Social Club. A história de Hemingway e seu refúgio na Bdeguita do meio e na Floridita. A aposta numa revolução socialista e no Estado Social. Os filmes e fotos que vi de Cuba,  onde as cores e um certo olhar sobre a persistência e a luta desse povo encobria o descolorido que eu encontrava agora. Cuba revisitada:  de um lado, o ideal, a utopia, de outro, a realidade e seus tropeços. Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás...

 Foi o encontro com a música que me devolveu a ternura ao olhar. Em todas as ruas, praças e bares há sempre grupos tocando e dançando. Salsa, mambo, merengue – uma mistura da influência espanhola e africana. Mas também há os grupos de jazz e de música clássica.

Ao final da tarde, depois de um dia passeando pelas ruas de Havana Velha – reconhecida, desde 1982,  pela Unesco, como patrimônio histórico e cultural -chego à Praça de San Francisco, lugar de grande concentração de turistas. É lá, na Basílica Menor de San Francisco de Asís, um convento  construído no final do século XVI, e hoje transformado em museu de arte sacra e auditório de música, que entro para assistir uma das apresentações do IV Festival Internacional de Mozart: Quinteto de cordas n. 3 em Do e o Quinteto de cordas n. 4 em Sol menor. Duas violas, dois violinos e um Cello. Na viola I, Firmian Lermer, reconhecido violista austríaco e professor da Universidade Mozarteum de Salzburgo, acompanha os membros da orquestra do Liceu cubano de música, alunos desse mesmo Liceu. Para além da música o que me encanta é o prazer desse músico mais velho e experiente em acompanhar e incentivar a apresentação desses jovens músicos. Prazer visível na forma como olha para eles e no abraço que eles lhe dirigem ao final de cada apresentação.

Na tarde seguinte, à porta do Gran Teatro Alícia Alonso, um outro encontro significativo. Uma senhora cubana tenta, como eu, conseguir um ingresso para a apresentação da noite. Ela me fala, com entusiasmo, sobre a paixão cubana pela dança. Em geral, os ingressos se esgotam logo no começo do ano. Ela própria sempre os compra com antecedência, mas, este ano, ficou muito doente e pensou que não viveria a tempo de ver as apresentações. Não foi o que ocorreu e agora ela, assim como eu, esperávamos por alguma desistência. Depois de quase duas horas de espera, a desistência foi nossa. Ela saiu da fila para buscar o neto na escola, eu,  vencida pelo cansaço. Assisti algumas das apresentações pela televisão e outras pelo telão colocado no calçadão ao lado do teatro. Não há ingresso para todos, mas não há restrições à divulgação simultânea dos espetáculos; um movimento solidário de acesso à cultura.

Na ida a Varadero – praia geralmente visitada pelos turistas - uma senhora faz uma pergunta inesperada: De Varadero se vê Key West? Marta, a guia cubana que nos acompanhava, ficou tão surpresa quanto eu. A turista espanhola insistia e afirmava que sim. Retirou a máquina fotográfica e mostrou uma foto que parecia confirmar essa possibilidade. A insistência foi se tornando irritante, e não terminaria se eu não tivesse lançado outra pergunta: Key West? Onde fica a casa de Hemingway? Não dei muita sorte. A tal turista era apaixonada por Hemingway e agora a insistência era para afirmar quem sabia mais sobre a vida do autor – se ela ou Marta. O divertido da historia é que Marta tinha sido professora de literatura inglesa e conhecia a vida e a obra de Hemingway. Começaram a discutir Por quem os sinos dobram, O velho e o Mar, os autores que o influenciaram, os lugares onde viveu – a Bodeguita del Medio, La Floridita, o quarto 511 do Hotel Ambos Mundos, La Finca Vigia. Anotei o roteiro para o dia seguinte...

No meio das referências literárias apareciam, na fala de Marta, as dificuldades da vida em Havana. A carreira que valorizava, mas que abandonou para trabalhar no turismo e dar aulas privadas de ingles. Os livros que gostaria de reler mas a que tem dificuldade de acesso.  Há, em Cuba, um misto de expectativas favoráveis às mudanças decorrentes da abertura do Regime e um receio da perda dos valores que marcaram a Revolução e que permitiram o acesso pleno à Educação, à Saúde e à Cultura.

O dia em Varadero é para o repouso. A areia branca,  a águal azul transparente e as palmeiras lembram as praias de nosso nordeste. O sol está quente apesar do inverno. Lá, assim como em toda a ilha, é possível pedir as bebidas preferidas por Hemingway - o mojito e o daiquirí, ambas feitas à base de rum branco.   

Ao final da tarde, uma foto com o grupo. Marta pede para não ser incluída; o guia precisa manter uma certa distância do grupo que acompanha.  O endurecimento do Regime deixou marcas profundas no exercício da liberdade.

Depois de um intervalo de quatro dias para o Congresso, mais uma visita ao centro de Havana e um passeio pelos jardins do Hotel Nacional, construído por Al Capone, com frente para o Malecón, avenida à beira mar por onde transitam os turistas, os pescadores, os namorados e os grupos ocasionais de música caribenha.

A tarde foi reservada para o Museu Nacional de Belas Artes. Logo na entrada, na sala à esquerda, uma exposição temporária. Deixo-a para o final e me encanto com as instalações de Sislej Xhafa, artista kosovar  que viveu de perto a desintegração da antiga Iugoslávia e fez de suas obras uma elegia à resistência.  Um colchão de casal abandonado nas ruas de Havana Velha é recortado no formato de um coração com as duas metades abertas. Um guarda-chuva colorido é o varal de apoio para as roupas recicladas que se vendem nas janelas das casas. Uma lápide com um telefone em cima cria um enigma surpreendente; não podemos falar com os mortos, mas, com quem falaremos no futuro? Em seus objetos há uma dialética de imobilidade e  movimento questionadora da capacidade humana para resistir, adaptar-se ou seguir adiante.  Reconheço-me na ternura poética das imagens que ele criou sobre Cuba.

Saindo do museu, a despedida na sorveteria mais famosa: Coppelia. Foi lá que descobri, mais uma vez, a experiência dos lugares segregados. Há a fila para os cubanos e o lugar para os turistas – sem filas. Um não tendo acesso ao lugar do outro. Eu não posso comprar a moeda nacional (CUP) que me permitiria entrar nesse lugar e a moeda a que tenho acesso (CUC) marca meu lugar de turista e o preço que tenho que pagar por produtos que, para mim, não estão racionados. Entendo o princípio e o valor econômico representado pelo turismo, mas me sinto atingida pela segregação.

Na volta ao Brasil vou ao centro da cidade em São Paulo. Necessidade urgente de resolver uma situação burocrática na representação do Ministério da Saúde. Vejo as pessoas deitadas nas calçadas, crianças pedindo esmolas nos faróis, prédios abandonados, pixados, vidros quebrados, pinturas descascadas, ocupações... Cenas tão presentes no nosso cotidiano.

Surpreendo-me perguntando a mim mesma porque me inquietei tanto com a precarização das moradias e das condições econômicas em Cuba. Lá, apesar da precariedade, não se vê pessoas jogadas nas ruas, crianças perdidas pela cidade e não há medo de transitar desacompanhada à noite. Havana ainda é uma cidade segura para caminhar.

Dei-me conta, novamente, que vivemos uma realidade terrivelmente segregadora. É bom, esporadicamente, ter olhos de estrangeiro para poder, de fato, enxergá-la.

20/11/2018

Maria Laurinda é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise Teoria e Clínica, autora dos livros “Violência”( 2005) e “Vertentes da Psicanálise”(2017) ambos da Coleção Clínica Psicanalítica, ed. Casa do Psicólogo.

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