Fórum de Discussão com o texto "Flores Amarelas" de Nicolas Winck

O Blog do Departamento abre seu espaço para um fórum de discussão sobre o momento atual de nosso país. Confiram abaixo o lindo texto "Flores Amarelas" de Nicolas Winck

Flores amarelas

Nicolas Winck

Grandes escritores do século XX expressaram a dor de seu tempo tentando descrever a relação entre o sujeito e a sociedade. Essa ponte foi historicamente resumida a um conjunto de receios que permeiam os desejos, as impressões e o discurso.

Fernando Pessoa publicou, em 1934, o livro Mensagem, no intuito de reconstruir e projetar de modo simbólico a história de Portugal. Foi justamente no terceiro poema da obra, denominado “Ulisses”, que o poeta consagrou uma das maiores sínteses do nosso passado ocidental:

“O mito é o nada que é tudo”. Não foi a primeira vez – e obviamente não seria a última – que o fato histórico e a ficção deram as mãos.

Um pouco depois, em 1940, Carlos Drummond de Andrade deu vida e público ao Sentimento do mundo. Enevoado como Pessoa, o poeta mineiro já reconhecia, no poema “Congresso Internacional do Medo”, que vivemos todos uma vida amedrontada, para, enfim, morrermos de medo. Fosse o medo “dos sertões, dos mares, dos desertos” ou ainda “o medo dos ditadores, medo dos democratas”, estaríamos ainda fadados a deixar a existência e partir para “o medo de depois da morte”.

A partir de obras engajadas como essas, é no mínimo cômodo que se atribuam significados ao recorte político e social do momento dos poetas – em um caso, a agitação de um governo militar que seria encabeçado por Salazar e, no outro, o Estado Novo brasileiro e a Era Vargas. É cômodo, mas não absurdo. A ideia não é aproximar com intimidade a história de Portugal à do Brasil, muito menos abrir mão das relações entre a obra e seus autores (até porque elas de fato existem). A questão é que a literatura já apontava, com seus recursos, o clímax do embate político de 2018: um período eleitoral que flutua entre a negação, o mito e o medo.

Nesse contexto, é importante reconhecer que nenhuma ação deixa de ser política por não estar revestida de nomes de partidos ou de referências a grupos de ativismo. E é justamente neste ponto que se diferenciam realidade e verdade: no discurso. O modo de expressar apoio ou aversão às propostas e ideias de figuras como Fernando Haddad e Jair Bolsonaro determina a relação entre as nossas verdades e a realidade tal como se apresenta para nós.

A mobilização EleNão, por exemplo, canalizou força expressiva na negação. Todos que aderiram a esse discurso conhecem a alta porcentagem de negativas que habita a retórica do candidato do PSL.

Durante grande parte de suas participações em debates ou entrevistas, ele nada mais fez do que negar. Negou frases que teria dito, negou possíveis alianças, negou estar presente em determinados lugares, negou tudo o que pôde. A frase “Jamais iria estuprar você porque você não merece”, esbravejada contra a deputada Maria do Rosário, em 2003, tornou-se uma de suas negações mais conhecidas não só pelo conteúdo absurdo de suas palavras, mas porque todos sabemos que se trata, na verdade, de uma grave afirmação. Ou seja, mesmo quando afirma, Bolsonaro o faz pela negação, pela violência. O capitão, sabemos, afirma-se no ato de negar o outro. No aniquilamento do que não lhe cabe à própria compreensão e, claro, ao seu orgulho.

Nesse sentido, uma manifestação coletiva contra Bolsonaro só poderia encontrar voz por meio do espelhamento do discurso do candidato, que emana repúdio, aversão e, finalmente, afastamento, uma síntese do não, do nunca, do jamais. Contudo, surgiu daí uma dialética complicada, pois, no gesto subjetivo de afastar o absurdo e no distanciamento do inimigo, o mito e o medo passaram a ganhar força, vida e sobrevida.

Quando Fernando Pessoa define mito como “o nada que é tudo”, está evocando o teor fundamental da ausência na origem das nossas crenças.

Referir-se a Jair Bolsonaro como mito, portanto, é justamente afirmar o caráter esporádico da sua presença real. É conferir um aspecto quase poético e lendário às suas ausências, por exemplo, nos debates, como se uma figura como a dele não fosse digna de uma interação tão intimista, tão terrena, tão aproximada a seus oponentes. É neste momento que o nadase torna tudo: no momento em que incontáveis eleitores apaixonados aprovam que ele permaneça distante dos debates, longe de seu adversário, e tornam-se, eles mesmos, seu corpo e propaganda. Bolsonaro, então, sai da condição de candidato e deixa a patente de capitão para converter-se em um mito, um princípio, um ideal. Ele pode não estar em debates, porém já está em tudo: nas redes sociais, nas mensagens de grupos de WhatsApp, não apenas na boca e na palavra de seus eleitores, mas nas de todos. Agora pelo sim ou pelo não.

Criou-se, com essa onda de ódio, preconceito e escárnio, uma força negativa onipresente. Uma nuvem escura de medo ergueu-se sobre a razão, sobre os fatos, sobre o estado de direito, sobre o bom-senso. É um medo generalizado, pois está nos dois lados: os que temem o caos da barbárie travestida de ordem e os que temem as responsabilidades trazidas pelas noções mínimas de civilização e democracia. Enfim o medo drummondiano dos ditadores e dos democratas. Os que negam Bolsonaro e os que negam Haddad. Ou melhor: os que negam as verdades de um e as verdades de outro. Eis a nossa realidade.

Sendo assim, há que se enfrentar o medo e renovar a linguagem política. Se fatos e Direitos Humanos foram transformados em questão de opinião – e, no limite, uma questão de fé –, é importante ressignificar as nossas referências e as nossas verdades. O que leva alguém a votar em Bolsonaro? Caso a resposta esteja envolvida por alguma negação, não se está votando em uma proposta de governo nem em um candidato a presidente, e sim elegendo um discurso. Um discurso que nasce no outro, mas que morre em nós. O medo que deságua na violência e que faz com que o indivíduo fique afastado daqueles que são seus semelhantes.

Não é novidade, porém, que as atitudes dos brasileiros oscilem entre as esferas do público e do privado, muitas vezes confundindo-as.

Atualmente elegemos um político que defenda os nossos interesses e, se as nossas ideias divergem das dos outros, paciência. Para compensar a falta de unidade, abraça-se um coletivismo postiço: o verde e amarelo, as camisas da Seleção Brasileira de futebol, quaisquer movimentos que estabeleçam a Pátria acima de tudo. A eleição tornou-se mais um jogo de final de campeonato: quer-se ganhar a todo custo, mesmo que seja à força, com armas e dentes, com subversões e com o completo apagamento do nosso passado histórico. A esfera dos interesses públicos foi implodida pelos grupos privados de WhatsApp e a verdade passou a alimentar o seu avesso: a mentira.

O conceito de mito, a partir daí, associa-se como sinônimo a termos como mentira e boato. A ausência, então, torna-se chave fundamental para a automação do medo que faz os celulares tremerem ininterruptamente. O discurso dos eleitores – muitas vezes referidos pela mídia indevidamente como fãs –, por outro lado, está presente, replicando o mito, que se apresenta na voz dos outros, longe da razão e do compromisso com outras verdades, mas que, nem por isso, deixa de ser uma realidade. O medo enterrou o discurso, sepultando-o nos comandos encaminhar e compartilhar. Afasta-se qualquer informação antes mesmo que se tenha tempo para pensar nela, e é preciso tempo e serenidade para desmitificar. Por isso que o longo prazo assusta tanto os brasileiros, que dormem abraçados a suas próprias verdades.

Drummond, no fim das contas, já cantou o medo, aquele que não permite que cantemos o amor. São duas opções que se anulam e que precisam urgentemente oferecer espaço para reflexão e diálogo. O poema do Sentimento do mundo, afinal, encerra-se com tom profético neste derradeiro verso: “e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”. O gesto de nascer em um mesmo plano da morte deve ser lido aqui como uma pergunta a respeito do que prevalece – se os nossos túmulos ou as medrosas flores amarelas. Se o túmulo sepulta qualquer esperança de humanidade e a cor amarela encontra eco na nossa bandeira, parece que o medo, por outro lado, se não mata, apenas faz dilatar o tempo. Tempo de repensar, talvez de renascer.

NICOLASWINCK é linguista formado pela USP e professor de Literatura e Língua Portuguesa.


Texto escrito em 19 de outubro de 2018

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