Texto Fátima Vicente - "Passar para outra coisa"

Nos dias 26 e 27 de outubro passado aconteceu o evento "CLÍNICAS REPUBLICANAS E DEMOCRÁTICAS, CLÍNICAS PÚBLICAS E ABERTAS" no Sedes Sapientiae cujas mesas eram formadas por aqueles que praticam a clínica nas ruas, nas praças, nos canteiros, nas casas, nos campos e nas florestas, nos trabalhos de recepção, de acolhimento, de cuidado e praticam a escuta, como dispositivo contra a exclusão em situações sociais críticas.

Confira abaixo o lindo texto "Passar para outra coisa" escrito por Maria de Fátima Vicente sobre a mesa de sábado, dia 27 de outubro, à convite do Blog do Departamento.





Passar para outra coisa

Maria de Fatima Vicente
                      
Era 27 de outubro de 2018, sábado cedo. Fomos quase pontuais e precisamente atentos. No auditório do Sedes Sapientiae aconteciam leituras abertas à evocação, a pensamentos, a emoções. Principalmente abertas à conversa.

Era a primeira mesa do segundo dia do evento “Clínicas republicanas e democráticas, clínicas públicas e abertas”. Um título longo que abarca histórias múltiplas e experiências diversas.

A abertura do evento ocorrera na noite anterior, com a apresentação do documentário de Eliane Brum sobre a triste história de Altamira/PA. Tristeza ponteada pelas histórias e singularidades subjetivas resgatadas dos escombros, na experiência de Saúde Mental que ali aconteceu, graças à escuta solidária, à presença andarilha e à fé cega na vida de quem dispõe de si ao outro. Apenas uma alegria discreta, brotada na confiança construída e na palavra partilhada. Palavras de uma amiga durante o café da manhã coletivo, já que não pude estar presente àquela noite. Havia faltado à importante abertura do evento, pois no mesmo horário, junto com Tatiana, colega psicanalista do Departamento de Psicanálise, e Juliana, colega assistente social da Clínica do Sedes, participara de uma das “Rodas de Conversa” sustentadas pelo coletivo Escuta Sedes. Dispositivo inventado na urgência destes tempos, para abrigar a angústia, a confusão, o medo, o temor de cidadãs e cidadãos perturbados com os riscos da polarização instalada no país, nos desarranjos do processo eleitoral em curso. Mais uma tentativa de experiência de saúde mental em um momento de loucura social.

Estávamos às vésperas do segundo turno das eleições para presidente do país. E do que elas significavam: à beira de nós, à beira do abismo, mas com a esperança nervosa de que ainda desse pra virar.

Era nessa vigília que ouvíamos daqueles colegas da mesa, como cada um “se vira” quando está extra-muros, quando exerce o ofício de psicanalista em  variados contextos, como fazer outras clínicas, aquelas necessárias.

É muito pouco dizer, nesses casos, que se trata de “sair dos consultórios”. É mais que isso.

Quando ouvimos o relato de Auro Lescher sobre o trabalho desenvolvido no antigo e sempre inquietante e juvenil Projeto Quixote, reconhecemos que é muito mais do que isso e outra coisa. Auro nos fala de educadores terapêuticos, os tais E.Ts, que vão munidos de mochilas lúdicas contendo algum material que possa dar sustentação à troca de palavras entre os educadores e quem está ou vive na rua. Troca por meio da qual o afeto do reconhecimento transita e faz tramitar o silêncio que embrutece ao fazer desse silêncio, a  esperança de voz, de fala, de canto. Às vezes, nasce um rap! Garotos e garotas ladeando o Casarão Amarelo da Consolação, de um lado, residência artística, do outro, mocó construído na angústia e na espera da polícia ou do parceiro.  

Logo, o trânsito e o trâmite fazem do muro uma banda de Moebius, sem dentro nem fora, banda em que soam vozes, risos, olhares e calores. Tudo se escora nesse circuito. Nada nem ninguém é escória. Não mais. Um novo modo da propriedade.

Sobre escoras e ancoragens nos falam Emília e Jorge Broid, representantes da espantosa empresa Sur, que conta somente com esses dois sócios para ir a campo aberto fazer Psicanálise. Fazer resgates. Engancham o cordão encarnado da História e das histórias.

Jorge resgata a história da longa, tradicional e pouco ortodoxa, mas, convenientemente esquecida pelos homens de bem, de algumas Psicanálises, aquelas da vocação psicanalítica para com os que não contam: os operários e os jovens de Reich, os pacientes da policlínica de Berlim, e vários outros. Dentre esses, os pobres.
Ah! Essa gente! Ah! Essa palavra!

Os pobres.

Curiosamente, essa palavra não aparece em nenhum dos  títulos de nosso evento. E, no entanto, nesse extramuros de um país de abissais diferenças sociais, econômicas e culturais, isso conta. Disso se conta.

Jorge nos lembra de que já em Freud, a ampliação da Psicanálise é pensada como questão de Saúde Pública, sob a responsabilidade do Estado. Estado que daria conta dos custos que a neurose acarreta à vida social e, que para subvencionar  o tratamento a tantos, teria que reduzir um pouco o custo  e o valor da Psicanálise: do ouro puro da transferência e da interpretação ao cobre da sugestão.

A espinhosa questão do risco de uma clínica de segunda qualidade porque voltada democraticamente também para os pobres é confrontada pela qualidade das clínicas apresentadas pelos colegas naquela nossa reunião. Pois, com sugestões também se faz boa clínica, aquela que resgata o brilho no olho, ou porque o leva “na mochila”, mas, principalmente, porque o transmite “olho a olho” ao reencontrar e reenganchar o fio daquela história na qual e no quando  os olhos brilhavam.

Emília traz a experiência de reenganchar, pela sugestão, a experiência que fez marca de valor no menino quase sem voz, experiência de valor que pode ser reconhecida ao ser retomada pela analista: voltar a apostar na alegria por meio da lembrança da alegria que havia quando a mãe sentia que tinha valor aovender garrafas de água no farol.
Lampejos! A transmissão da experiência vivida por meio da justa forma.

Nesse pequeno ponto de luz uma história para contar, a história dos papeizinhos que marcaram o intercâmbio com o outro, aquele sedento, para quem se tinha água a oferecer. Registro dos valores cobrados e recebidos. Mais que contabilidade, traços para escrever uma nova história, para criar, para fazer a vida com alegria prosseguir.

O custo de levar a Psicanálise aos pobres é o custo de lhes reconhecer o valor. Não muitos estão dispostos a pagar o preço. Divisar os pequenos faróis na escuridão dos tempos, à qual olhamos de frente e juntos. Um novo modo da amizade.

Disso sabe bem o movimento que acolhe Noemi Araújo, porque precisa da Psicanálise que ela leva, transporta e transmite.

A experiência de escutar os alunos da Escola Florestan Fernandes, na qual as lideranças em preparação do MST se apoiam e se educam é feita de alianças e de profundo respeito e perseverança para com o desejo de cada um.

Insistir, perseverar, permanecer, de corpo presente, ficar assentada no lugar da escuta enquanto cada assentado faz sua passagem naquela casa de itinerância. Intervenções no ponto, passagens pontuais. Esse é o trabalho de Noemi.

É, porém, com o relato sobre as crianças do MST que fazemos a experiência da liberdade do sujeito como fundamento, experiência à qual a escuta da psicanalista deu lugar e da qual ela traz notícias à comunidade psicanalítica.

Ela nos conta que as crianças foram a ela por si próprias, em transferência uma com as outras e cada uma esperando a sua vez. Porque a vez e a voz ali estão asseguradas.
Fazem seu singular percurso de análise e se vão. Nenhum pai e mãe a obstruir lhes os caminhos. Porque estes já foram abertos pela confiança depositada e nas responsabilidades que lhes foram reconhecidas, não só pelos adultos, mas também por eles.

As crianças que vão e vêm sobre seus próprios pés falam de uma possibilidade de laço social em que a solidariedade fale e seja ouvida, para além da autoridade da família. Daquilo que entra no jogo quando o desejo encontra seu lugar na polis.

Sobre isso conversamos com os colegas que nos falaram à mesa: sobre ETs de mochilas, sobre brilho no olho, sobre a memória e sobre a perseverança. Sobre o que encontram os psicanalistas quando caminham entre as gentes e aprendem com elas. Conversamos sobre a paciência histórica nestes tempos, sobre apostar que é possível sair da repetição, que o sujeito possa advir no laço social e na instituição psicanalítica. Um modo cotidiano e vivo de virar: passar para outra coisa.


Maria de Fátima Vicente é psicóloga e psicanalista, trabalha em consultório privado desde 1978. É professora do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1992, e membro do Departamento de Psicanálise desta instituição  desde sua fundação. É mestre em Psicologia e doutora em Ciências Sociais, autora de “Psicanálise e Música – Aproximações”, São Paulo: Editora Pearson/Casa do Psicólogo - Coleção Clínica Psicanalítica coordenada por Flávio Ferraz.

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