A Clínica Psicanalítica em Tempos Sombrios

O Blog do Departamento replica o artigo de nossa colega Maria Silvia Borghese publicado na Revista Mais de Um, nº 3. A psicanalista parte de fragmentos clínicos para refletir sobre a dimensão política e seus atravessamentos nas relações familiares, afetivas e de amizade, diz a autora “sob o slogan ‘o gigante acordou’, a sociedade brasileira se viu atravessada pelas movimentações políticas que passaram a acontecer na porta de suas casas e, através das redes sociais, invadiram seus refúgios mais íntimos e privados: sua vida, sua casa, sua família”. Quais os ecos, os efeitos, as produções da dimensão política na constituição das subjetividades? Qual a função da psicanálise e do psicanalista nos atravessamentos produzidos nesta injunção sujeito-sociedade na contemporaneidade e no cenário brasileiro atual? Confira no texto abaixo:

A CLÍNICA PSICANALÍTICA EM TEMPOS SOMBRIOS
O que política tem a ver com psicanálise?

“Estou muito angustiado... Nunca pensei que fosse passar por uma coisa dessas. Minha namorada foi embora, pra nunca mais voltar. Levantou, pegou a bolsa e foi embora. Acho que antes de chegar em casa, no caminho mesmo, ela foi me bloqueando em todas as redes, no Whatsapp, no celular. Chegou em casa e avisou ao porteiro que eu não seria mais bem-vindo, que estava proibido de subir. Tudo porque confessei a ela que votei no Bolsonaro! Me chamou de fascista, mas isso não é fascismo também? Ela abriu um buraco sob os meus pés.”
“Como você acha que eu vou poder esquecer as coisas que meu marido me disse? As palavras dele nunca mais voltarão pra boca. Quem é essa pessoa? Onde ele estava em mais de 20 anos de casamento? Um cara machista, escroto, um lixo. Disse que as coisas mudaram, que agora chega de ‘putaria’. Você acredita? Disse isso assim, literalmente. ‘Bolsonaro veio pra ficar, aceita que dói menos’. Isso não é jargão de estuprador? Já chorei tanto... Eu queria tanto continuar casada, mas sinto que não vou mais conseguir.”
“Eu estou aqui porque minha família está em ruínas. Meu marido votou no Bolsonaro, meus três filhos (o mais velho não é filho dele) são militantes de esquerda. Meu filho mais velho é gay e ativista. A casa virou um caos e ninguém mais se fala. Sinto que vivo em uma câmara de gás. Tento conciliar o tempo todo, mas só está piorando porque os dois lados me olham com desprezo. Mas eu acho que não é possível que todos tenham se transformado apenas em eleitores, opositores e, pior, representantes do ódio. Somos família, todos se amavam! Quero que isso tudo passe, achei que ia passar depois do fim das eleições, mas não, nem de longe. Que desolação!”
Os fragmentos clínicos acima expressam de maneira bastante fiel e contundente o que vem acontecendo nos últimos tempos na clínica psicanalítica no Brasil, seja em consultórios particulares, seja em clínicas institucionais, abertas, públicas etc.[1] A dimensão política da sociedade nunca esteve tão presente na vida cotidiana das pessoas, atravessando o campo das relações familiares, afetivas e de amizades. Ficou praticamente impossível contar a própria história sem considerar a dimensão política – constitutiva da subjetividade – como eixo fundamental da narrativa.
Em contraposição aos movimentos alienantes do sujeito contemporâneo, para o qual a ‘vida política’ poderia ser negada ou anulada do ponto de vista das  histórias individuais, as pessoas se viram atropeladas pela necessidade de se posicionar do ponto de vista politico, especificamente.
Contudo, levará ainda um certo tempo para que a natureza dessas movimentações politicas possam ser elucidadas, pois capitalismo e alienação são termos de um binômio necessário e indissociável. O que então vem ocorrendo nesses tempos de mídias sociais e “fake news”?
Por um lado, as pessoas passaram cada vez mais a encenar a vida cotidiana, montando o próprio espetáculo para uma sociedade na qual os componentes narcisistas se encontram exacerbados. De outro, a busca por pertencimento através da construção de laços sociais estáveis e da escrita da própria história em bases mais consistentes, deixaram de ser metas subjetivas fundamentais, passaram para um plano secundário.
Os efeitos desses processos que podemos chamar de “dessubjetivantes” ainda necessitam ser analisados com maior profundidade, mas já é possível afirmar que o excesso de individualismo e a inconsistência e superficialidade dos laços sociais desencadeiam circuitos afetivos mais primários, nos quais o ódio e a intolerância são elementos predominantes.
Nas sociedades regidas pelo neoliberalismo, mais do que ter acesso aos bens de consumo – princípio básico do capitalismo –, vivemos sob os imperativos de ‘parecer ter’ e, mais ainda, ‘parecer ser’. Em tempos de exposição excessiva da imagem, as narrativas decorrentes de elaboração psíquica vão sendo substituídas por comunicações imediatas e espetaculosas, o que obriga os sujeitos a dispenderem um tempo considerável na fabricação de personagens, como forma de garantir inclusão, ao menos na experiência da vida virtual. 
Se considerarmos o chamado período de redemocratização do Brasil, podemos dizer que a maioria das pessoas, sobretudo as mais jovens, viveu pelo menos duas décadas de forte alienação da vida política, uma vez que a democracia supostamente conquistada, revelou-se como democracia “financiada” pelo capital, pautada pelas chamadas leis de mercado, dominantes e determinantes do nosso frágil e distorcido sistema político de representação.
Cabe perguntar, os movimentos de junho de 2013 ocorridos no Brasil tiveram um efeito “desalienante”? Do ponto de vista de seus significados, cujas análises ainda hoje são controversas e contraditórias, talvez precisássemos percorrer caminhos muito mais complexos e que fogem ao objetivo deste artigo. Contudo, sob o slogan “o gigante acordou”, a sociedade brasileira se viu atravessada pelas movimentações políticas que passaram a acontecer na porta de suas casas e, através das redes sociais, invadiram seus refúgios mais íntimos e privados: sua vida, sua casa, sua família.
Com a constatação de que a criação de uma sociedade de consumidores havia se demonstrado inviável, uma vez que a grande maioria seguia excluída dos benefícios da vida de sucessos prometida pelo neoliberalismo, as pessoas começaram a se dar conta, em certa medida, de que “sujeitos apolíticos” não existem. Não se forjam subjetividades fora dos laços sociais e toda sociedade, ainda que rudimentar ou primitiva, se funda em pactos e em sistemas políticos, possui estruturas mínimas de governo e de organização de poder.
De que lugar falava o sujeito e a que fins atendiam suas pretensões ‘apolíticas’? Quando alguém escolhe imaginariamente se manter alheio ou destacado das condições políticas do viver, não evita, na verdade, que os efeitos desta dimensão o alcancem e o impactem em sua vida cotidiana.  Os laços sociais e afetivos, as relações de trabalho, de estudo, e também as relações institucionais são tanto estruturantes, do ponto de vista subjetivo, quanto configuram o campo social determinante das condições de existência.
A crença, portanto, de se estar protegido intimamente, pensando-se fora da dimensão política, cumpre a função, no mais das vezes, de garantir que os sujeitos aceitem de modo passivo e alienado um jogo de forças que mantêm certos grupos no poder econômico e político.
Porém, é preciso sublinhar que em tempos de forte manipulação das informações e de guerra feroz de narrativas, pensar em ‘desalienação’ também pode levar a equívocos intransponíveis, pois é possível criar pessoas “desinformadas e deformadas” justamente pelo excesso de informações. Os mecanismos de exposição maciça das pessoas a toda sorte de informação e, em contrapartida, de indução à apresentação de sua vida privada sem barreiras nas redes sociais, atacam sua capacidade de pensar, sua dimensão propriamente subjetiva.
No último processo eleitoral vivido no Brasil, as diferenças e cisões ideológico-políticas se acentuaram significativamente, transbordando e invadindo os recantos mais privados e primários da vida e gerando intenso sofrimento psíquico. A suposta proteção que se poderia encontrar no isolamento e na alienação da vida política se rompeu de modo violento, obrigando as pessoas a se reencontrarem com sua história, suas referências, suas origens e, sobretudo, com os lugares sociais que tinham conseguido alcançar.
Fenômenos inquietantes, e até angustiantes, passaram a ocorrer, na medida em que a história privada das pessoas apenas poderia ser contada na fronteira da dimensão público-política, por um lado, e íntimo-privada, de outro. Qualquer movimento que o sujeito possa fazer para ‘se contar’ obriga à inclusão das referências de origem, classe social, posição ideológica, politica etc.
Sabemos que as sociedades democráticas vivem em constante regime de exceção, uma vez que apenas uma minoria abastada economicamente tem acesso às estruturas de poder e bens de consumo e que a grande maioria vive de maneira passiva e alienada, aceitando uma vida modesta ou ruim. Nesse sentido, o caos politico que se instalou no Brasil desde junho de 2013, de certo modo, desinstalou uma parcela da população de sua estagnada condição de alienação. De repente, as pessoas se viram compelidas a tomar partido, a escolher um lado, agora suposto a partir das fortes tensões sociais que só fizeram crescer.
Porém, a sociedade passou a viver uma espécie de ‘guerra pulverizada’, uma guerra que se arrastou para dentro de suas casas, de suas relações mais íntimas. Na verdade, a vida se revelou como uma fonte permanente de surpresas e sustos que inundam nosso cotidiano e nos arrastam dia após dia. Tudo passou a acontecer de maneira incessante, intempestiva e imprevisível. As pessoas se sentem cada vez mais desamparadas e, até mesmo, paralisadas. As mais diversas escalas da experiência cotidiana são impactadas por elementos improváveis, o que acentua a sensação de caos.
Será que o gigante acordou? Ou foi arrastado para um pesadelo que insiste em não terminar? Cada vez mais, as ‘novas’ narrativas que negam a politica passaram a substituir os chamados velhos discursos políticos, para no final das contas seguir reproduzindo exatamente o mesmo sistema político regido pelo poder econômico. O poder vai trocando de mãos mas não de cara. Alienação/desalienação/alienação se demonstra muito mais como falsa alternância, pois os signos que nos orientavam no mundo até pouco tempo atrás desapareceram, mas outros códigos começaram a ser rápida e ferozmente forjados.
A contemporaneidade nos coloca diante de um quadro agudo de uma patologia social que nos atinge intimamente, virando do avesso todas as referências que nos pareciam mais estáveis e caras. O desalento se impõe como ‘pathos’, levando os sujeitos à paralisia, aprisionando-os de volta às  formas mais eficazes de alienação. Alguma coisa está fora da ordem mundial, já nos advertiu o poeta, mas, como efeito do êxtase ou da paralisia do pensamento, ainda estamos incapacitados para identificar caminhos. Acredito que precisaremos de muito mais tempo para interromper a sensação de estar vagando em um espaço sem começo, meio ou fim.
Finalizo, ressaltando que a psicanálise – teoria e clínica – está irremediavelmente confrontada com esses dilemas, com as formas de adoecimento e sofrimento psíquico advindos de tempos em que as condições traumáticas de existência se impuseram aos sujeitos, que nascem em desamparo e são jogados cada vez mais ao desalento e à mais completa desilusão. Buscar amparo e pertencimento pressupõe a crença de que a alteridade, a vida em sociedade, poderia dar garantias mínimas de uma vida digna e tranquila. Se a vida se mostra, assim,  utópica e ilusória, não há mais nada a perseguir. Ficamos condenados ao registro da dor e do trauma. Perdemos muito de nossa humanidade, certamente.
A psicanálise, depois de 120 anos não se converteu em anacronismo, pois seu dispositivo clínico segue válido, a meu ver. Como dispositivo subjetivante, possibilita ao sujeito revisitar sua história, reconstruir seus signos. O sujeito fala e pode ser escutado pelo psicanalista em uma escala artesanal, paciente e persistente. Contrapondo-se à velocidade insana e cruel da vida contemporânea, que acaba por fazer desaparecer nossos traços mais peculiares, encontrar um tempo para literalmente ‘desplugar’ não me parece algo que se possa dispensar. Não é  nada desprezível poder desligar os equipamentos tecnológicos – celulares, tablets, notebooks – para dar nome, para si mesmo e para um outro, à complexa trama que só faz fomentar uma imensa angústia e um insustentável mal-estar.
  
Maria Silvia Borghese é psicanalista, membro e professora do curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae, e colunista do Blog do Departamento. É autora dos livros “Depressão & doença nervosa” (Via Lettera, 2004) e “O tempo e os medos. A parábola das estátuas pensantes” (Blucher, 2017)    


[1] O primeiro fragmento foi retirado da sessão de um paciente atendido em consultório particular e os dois últimos foram retirados de relatos de pessoas que participaram das Rodas de Conversa do projeto Escuta Sedes, desenvolvido por psicanalistas no Instituto Sedes Sapientiae – SP, que se reuniram e a partir de setembro de 2018 para refletir sobre as especificidades do sofrimento psíquico e o significativo aumento da demanda de ajuda em diversos níveis devido ao acirramento das polarizações politicas no país.

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