As dificuldades de elaboração do luto diante da pandemia da COVID-19
As dificuldades de elaboração do luto diante da pandemia da COVID-19
Ivone Honório Quinalha
“... Tem
circulado uma enorme quantidade de imagens e relatos de como as pessoas mortas
em decorrência dessa doença não podem ser veladas e sepultadas com todos os ritos
tradicionais às mais diversas religiões e visões de mundo. Caixões lacrados,
enterros esvaziados, familiares afastados: não apenas vive-se em isolamento,
mas a morte também se dá em total distanciamento, dificultando a ritualização e
o trabalho do luto.
O
objetivo deste texto é analisar, sob a perspectiva teórica da psicanálise
freudiana, as dificuldades relacionadas à simbolização e
representação da ausência de pessoas cujas vidas foram ceifadas
pelo Corona vírus, impedindo as formas mais usuais de despedida por
parte de seus entes queridos.
Como, então, elaborar uma perda assim? Em outras
palavras, como elaborar uma falta, imposta de forma repentina e traumática, na
forma de uma pandemia?
Nas
últimas semanas, o mundo tem atravessado um trauma coletivo de enorme
magnitude. São milhões de casos e milhares de mortes em virtude da COVID-19,
cifras impressionantes que crescem dia após dia, sem que haja um horizonte à
vista para a solução do problema.
Devido
ao alto grau de contágio dessa doença, impôs-se como medida indispensável de
enfretamento da pandemia o distanciamento social. As pessoas, convertidas todas
em potenciais vetores de transmissão da doença, repentinamente condenadas ao
isolamento. Para estancar a circulação do vírus, um remédio amargo: não há
alternativa senão manter, tanto quanto possível, todos em suas casas.
Os
custos emocionais e sociais de um confinamento tão radical, apesar de
justificado pela epidemiologia, são significativos. Para salvar vidas e cuidar
da saúde pública, de modo a assegurar que o sistema de assistência não colapse,
é preciso renunciar a qualquer sociabilidade com contato físico, restando
apenas a virtualização das relações afetivas, familiares e profissionais.
Essa
experiência de isolamento, por si só, já tem sido fonte de angústia e sofrimento
para muitas pessoas. Tanto porque há dificuldade de adaptação à nova realidade,
quanto pelos mecanismos de defesa (negação) e sintomas desencadeados em uma
situação desconhecida e subjetivamente custosa.
Mas
tudo parece ficar mais grave diante de um cenário de iminência da morte, seja
do próprio sujeito, seja dos seus entes queridos. Tem circulado uma enorme
quantidade de imagens e relatos de como as pessoas mortas em decorrência dessa
doença não podem ser veladas e sepultadas com todos os ritos tradicionais às
mais diversas religiões e visões de mundo. Caixões lacrados, enterros
esvaziados, familiares afastados: não apenas vive-se em isolamento, mas a morte
também se dá em total distanciamento, dificultando a ritualização e o trabalho
do luto.
O
objetivo deste texto é analisar, sob a perspectiva teórica da psicanálise
freudiana, as dificuldades relacionadas à simbolização e representação da
ausência de pessoas cujas vidas foram ceifadas pelo Corona vírus, impedindo as
formas mais usuais de despedida e de desinvestimento libidinal por parte de
seus entes queridos.
Partindo
dessa indefinição produzida pelo isolamento na vida e na morte em relação à
ausência de uma pessoa amada, pretendo refletir de que forma é possível
trabalhar essa espécie de perda objetal em circunstâncias especialmente difíceis
de ser elaborada.
Isso porque, a
partir do momento em que o objeto amado deixa de existir para o sujeito, o
trabalho de luto passa a operar, exigindo que sejam retiradas as conexões da
libido com esse mesmo objeto, outrora em posição privilegiada no campo do
desejo do indivíduo.
É
verdade que toda perda objetal implica um resto que não se deixa elaborar. Em
outras palavras, nunca há elaboração absoluta da perda de um objeto querido,
porque esta nunca pode ser plenamente consumada no processo de humanização.
Isso é da própria natureza da perda. Contudo, quando a ausência é imposta de
modo traumático através do isolamento forçado e de um interdito à despedida, a
dificuldade de elaboração da perda assume contornos particularmente dramáticos
para o sujeito.
Desse
modo, atentando a essa situação peculiar, a partir dos conceitos do luto no
pensamento de Sigmund Freud, será possível examinar a singularidade desse tipo
de configuração afetiva. Ele afirmou que, para o leigo, o luto pela perda de
algo que amamos ou admiramos parece tão natural, que ele o considera evidente
por si mesmo.
No
entanto, o luto é um grande enigma, um desses fenômenos aparentemente simples e
que, em si mesmos, não são explicados. Daí a falta de explicação de ser este um
processo tão doloroso.
Em
outro texto, Freud analisa a postura cultural-convencional que o ser humano
comumente adota em face da morte, no sentido de afastá-la da vida, pô-la de
lado, reduzi-la a silêncio. Essa dificuldade de lidar com a finitude da
existência aumenta quando se enfrenta a morte de alguém muito próximo, como
"um genitor ou cônjuge, um irmão, filho ou amigo precioso". Quando
isso ocorre, enterram-se com a pessoa amada "todas as nossas esperanças,
ambições, alegrias, ficamos inconsoláveis e nos recusamos a substituir aquele
que perdemos. Nós nos comportamos como os asra, que morrem, quando morrem aqueles que amam". Justamente, a perda
de um ente querido reforça a tendência a excluir a morte do cálculo da vida,
como se esta pudesse existir sem aquela, ao menos para os que são queridos. Por
exemplo, "paralisa-nos o pensamento de quem haverá para substituir o filho
para a mãe". Isso porque "esses amores são para nós uma propriedade
interior, componentes de nosso próprio Eu.
A
referência teórica da Psicanálise permite uma compreensão do processo de
elaboração do falecimento, abrangendo
tanto suas consequências plano individual como no coletivo. A preocupação
central do discurso psicanalítico aplicado a esse tipo de situação é, em termos
gerais, encontrar algum sentido para ao vazio deixado com o trauma da retirada,
depois de um período já de distanciamento, de quem amamos.
A
primeira dificuldade dessas mortes operadas à distância é certeza angustiante
de que o ente querido, que partiu longe e isolado, bloqueia a operação
tradicional do luto, eis que o investimento libidinal permanece retido nesse
objeto cuja existência foi suspensa, consumindo as energias do Eu sem que o desligamento
seja possível. Pois se toda ausência pode ser sentida, de início, como dor
decorrente de uma perda, a morte em condições dramáticas de uma pandemia
torna-se um sofrimento que não se elabora como despedida.
Como,
então, elaborar o luto de uma perda assim? Em outras palavras, como elaborar
uma falta, imposta de forma repentina e traumática, na forma de uma pandemia?
Nesse
cenário, cujos contornos ainda são imprecisos e cujo terreno ainda estamos
desbravando, a rigor, nem o luto, nem a melancolia conseguem dar conta de
explicar a forma de experimentação dessa perda de um ente querido por uma
pandemia tão grave. Isso porque, em geral nos casos relatados, não se
desaparece apenas com vida, mas com a própria morte das pessoas amadas, que já
estavam isoladas e distantes e cujos corpos não puderam ser sepultados e
ritualizados. Assim, o luto iniciado não segue as características normalmente
esperadas. Tampouco se trata de melancolia, pois a força da ligação com o
objeto amado é tanta que não permite a desconexão e a libido não regride para o
Eu, rebaixando a autoestima como é típico desse quadro patológico.
Ainda é cedo para ter
respostas definitivas quanto às reações e estratégias do sujeito diante de um
evento de tamanha gravidade e peso. Em que medida o sujeito encontrará clareza
da consumação da perda? Como será possível a sublimação de parcela importante
dessa libido desencontrada de seu objeto? A verdade é que esse caminho
sublimatório será feito por cada um renovando em alguma medida os laços não
rompidos com esse objeto que desapareceu em circunstâncias traumáticas. Em
outros termos, a passividade da dor e do sofrimento poderá ser convertida em
uma postura de acordo com os recursos individuais de cada um, que busca
elaborar e dar sentido nessa forma de recuperação do sentido positivo da vida. Isso
pode ser ainda mais difícil em um momento no qual falta amparo estatal, fragilizam-se
os laços sociais e a crise econômica afeta a renda e a sobrevivência material
de muitas famílias. Mas coisa é certa: haverá vida após a pandemia, a questão é
qual vida escolheremos cultivar e (re)construir de agora em diante.
Ivone Honório Quinalha
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise da Criança do Sedes
Sapientiae. Fez especialização em Psicoterapia Psicanalítica no SETTING -
Estudos em Psicanálise e em Psicologia Hospitalar na UNISA. É fundadora do
Instituto Cuida de Mim- Centro de Atendimento, Estudos e Pesquisas em Saúde
Mental (www.institutocuidademim.org.br). É aluna do curso de
Psicopatologia Psicanalítica Contemporânea do Departamento de Psicanálise do
Sedes Sapientiae.
Parabéns pela excelente análise.
ResponderExcluirParabénssss ������ Exatamente isso.As pessoas estão atravessando poruma situação muito difícil, onde todos estão se adaptando com não conseguresiliência.Quem não conseguia está fazendo de forma forçada..Bjs querida ����
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