Morte Seca
Em Morte
Seca, Mara Selaibe trata da
difícil situação vivida pelos familiares das vítimas do Covid. Ao serem
impedidos de viverem devidamente os rituais de despedida, como será possível
dar contorno ao trauma da perda? Quais serão as consequências disso?
Morte seca
Mara Selaibe
Enfurnados numa pandemia planetária, estamos em meio a uma
ameaça real de morte. Estamos em meio às mortes. Estamos cercados por dados
relativos à morte contabilizada nas tabelas e desenhada nos gráficos. E
bombardeados pela descrição de um tipo de morte dolorida, sufocante e
solitária. Na Itália, uma campanha pela doação de tablets se sustentava no slogan
“Direito de dizer adeus”, reduzindo a tragicidade do impedimento a uma
despedida real ao direito de encontro virtual para o adeus por imagem. E
depois, como se não bastasse, estamos privados das solenidades dos complexos
rituais funerários. Velórios só com presença máxima de 10 pessoas, distantes
entre si, e que não pertençam ao grupo de risco ou que apresentem qualquer
sintoma respiratório; caixão
fechado “para evitar qualquer contato com o corpo”...
Desde
os Neandertais, há cerca de 300.000 anos, os mortos são objeto de atenção
especial. Os Homo sapiens jamais deixam de ritualizar a despedida de um ente
morto. Trata-se de uma tentativa benigna de processar o luto pela perda
significativa. Sem os rituais – não necessariamente, mas também religiosos –
como dar expressão ao que não é alcançado pelas palavras diante do real da
morte? Como iniciar e prosseguir no trabalho de luto psicológico e social? Em
que termos contextualizar a experiência da perda sem o apoio aos enlutados que
o coletivo propicia?
Os
rituais fúnebres implicam reações humanas frente à perda por morte. Disso
estamos privados em grande parte. Perde-se uma pessoa amada e perde-se o
direito a uma despedida seja nos estertores da vida, seja no momento imediato pós-morte. Cuidados minuciosos dedicados ao corpo do morto,
longos e detalhados procedimentos grupais nos velórios assinalam a perda,
afirmam a vida vivida e agora encerrada, facilitam a expressão do luto de
acordo com os valores partilhados, criam espaço de continência para uma direção
de sentido às vidas dos que permanecem. Para estes, o momento de comunhão, de
cumplicidade, de compaixão realiza, em parte, a conexão com os outros e marca,
por isso, o início do trabalho de luto. A importância de oferecer um tributo
digno a quem se foi, através de uma cerimônia compartilhada, é uma via para
reintegrar essa pessoa em outro lugar: na memória. Esse momento da despedida
final, não deixa dúvida sobre a força simbólica exigida necessariamente na
elaboração da perda de pessoas amadas.
Claro,
a privação dos rituais, neste momento, se coloca em nome da preservação da vida
que segue em meio a essa crise sem precedentes na história do planeta. Mas esse
fato, irredutível e inescapável, entretanto, não me parece suficiente para
eliminar as implicações psíquicas dele decorrentes e nem tampouco as implicações
sociais. A morte, nessas proporções promovida pelo coronavírus, representa um
conflito extremo e não se resolve na objetividade das medidas sanitárias
indispensáveis; porém, não está dada a possibilidade de que seja vivida
emocionalmente também nos moldes completos dos rituais histórica e
culturalmente presentes. Funerais dão um contorno ao trauma da perda, criam uma
passagem transitória para os vivos, oferecem aos que estão privados da presença
de alguém amado, um suporte pela pertinência grupal na cultura – cujo respaldo
se manifesta justamente por sua previsibilidade (ritualística...) num momento em
que a experiência da morte e da perda desorganiza, choca, traumatiza os
enlutados.
Nos
rescaldos da Covid 19, desconfio que seremos demandados a lidar com lutos
crônicos, lutos adiados, fragilizações psíquicas, desorganizações
psicossomáticas... Funerais são enquadres universais capazes de atender
psíquica e socialmente os que foram atingidos de maneira lancinante pela morte
de alguém significativo em suas vidas. Essa pandemia traz consigo também esse
impasse com o qual, psicanalistas que somos, assistiremos por um período não
desprezível. Rituais fúnebres fazem-nos saber sobre a inquietação provocada
pela morte e podem ser entendidos também como a busca de uma continência, em
nossas vidas, do que dela escapa.
Mara Selaibe é psicanalista, membro do
Departamento de Psicanalise do Instituto Sedes Sapientiae, articuladora de
relações externas do Conselho de Direção 2019/2020
A iniciativa do Blog de retomar suas atividades foi muito feliz para compartilhamento de um momento inédito e único em que o real da morte que nos ronda faz abrir lutos subjetivos e renascimentos ao mesmo tempo em que nos conforto com as ameaças que Mara Selaibe sintetiza tão bem neste texto bem como também os dois textos que precederam este. Mas a síntese nada seca de morte seca foi escrita de uma forma simples e acessível a um não psicanalista. Merecia ser amplificada pelas redes sociais e por outros órgãos de comunicação Parabéns pela iniciativa turma boa do blog!
ResponderExcluirSaiu conforto ao invés de confronto. Belo lapso pessoal e coletivo. Há os que estão no conforto e os que estão no desconforto ambientais. O que expõe um confronto da desigualdade mesmo se o vírus não a enxergue e dizime igualitariamente assim como a precariedade dos rituais de morte é para todos ainda que Manaus mostre de maneira gritante a desigualdade das covas coletivas e do empilhamento de caixões. Aí se nãofor um trauma coletivo é porque parte do país está muito doente do vírus da negação e da rejeição.
ResponderExcluirEsse texto que aborda a questão dos rituais que permeiam a perda das pessoas amadas faz pensar nos desaparecidos políticos da época da ditadura no Brasil e quantas famílias continuam a procura desses corpos, sem também terem tido o direito à uma despedida.
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