Em tempos de pandemia, uma breve reflexão

Inaugurando a série de textos que publicaremos no intuito de contribuir com as leituras e compreensão dos tempos em que vivemos, Luciana P. Venturine Gutierres escreve sobre o mal estar social, sobre a renúncia narcísica e a exigência de trabalho psíquico frente a ela, sobre a dimensão traumática da situação atual. Confiram a seguir "Em tempos de pandemia, uma breve reflexão".



EM TEMPOS DE PANDEMIA, UMA BREVE REFLEXÃO

Luciana P. Venturini Gutierres

Em tempos de pandemia, a possibilidade de reflexão soa como uma brisa fresca em meio ao calor dos acontecimentos, das notícias assustadoras sobre um vírus desconhecido e seus efeitos, das buscas pela cura e prevenção, dos discursos contraditórios de nossos governantes.

O imperativo desse momento é “fique em casa”! Um imperativo que carrega insígnias de cuidado consigo, mas também, de cuidado com o outro, com quem se ama. Já dizia Lacan que amar é dar o que não se tem. Em O mal estar na civilização, texto de 1930,  Freud faz uma profunda reflexão sobre o vínculo do homem com o mundo que o cerca e sugere que a cultura, enquanto produto da civilização, produz um mal estar nos seres humanos uma vez que estes precisam renunciar à satisfação pulsional e às tendências destrutivas para se viver em sociedade. 

Se distanciar do outro, se isolar, trabalhar em home office, ficar sem trabalhar, não ganhar, e o fracasso da economia?  A falta de  sustento, as saídas criativas para lidar com as impossibilidades? Estudar online, atender online? Como não trabalhar ? Estamos,sim, em pleno trabalho, trabalho psíquico a partir do qual vai sendo possível, para quem tem condições – inclui-se aqui as mais diversas – de se aventurar, a encontrar saídas possíveis para tamanho impasse a que nos vemos submetidos. Trabalho psíquico também para aqueles que se recusam ou se negam a entrar em contato com o estranho perigo invisível que nos cerca. Trabalho psíquico para aqueles que tem poucas condições de se proteger, até concretamente. Trabalho psíquico para aqueles que se ocupam de ajudar os que não tem condições de se proteger. A dimensão da renúncia narcísica em nome da alteridade é trabalho! E para cada sujeito  o é de uma determinada maneira. Dimensionar ou não aquilo que resta de narcisismo ante as renúncias, é trabalho! A impossibilidade de renúncia é trabalho! E lidar com o mal estar resultante, como propunha Freud, é trabalho imenso.

O que, de cada sujeito singular, pode ser ativado por essa situação traumática que vivemos? Um estranho invisível que vem escancarar nossa condição humana, uma condição que não nos dá a garantia suposta de completude, de onipotência enquanto espécie. Um estranho invisível que carrega consigo um excesso, excesso daquilo que não podemos enxergar, excesso daquilo que não podemos representar, excesso daquilo que nos escapa, que nos assalta, que nos assola, assim como o irrepresentável da morte.

E assim, seguimos tentando lidar com os contornos e os limites, contornando a angústia, limitando e discriminando a vida pública da vida privada no trabalho home office; dando vazão para o excesso de afeto num choro ou irrupções de irritação e, ao mesmo tempo, tentando delimitar o tempo pra faxina da casa e o tempo com os filhos; tentando entender o que se passa dentro e o que passa fora e negociando o espaço da casa para o trabalho online. Rearranjos necessários para lidar com nossa incompletude.

Luciana P. Venturini Gutierres é psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, mestre em Psicologia da Saúde pela USP de Ribeirão Preto e psicóloga do Hospital do Servidor Público

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um rubi no centro da tela

Gaza como Metáfora

Destraumatizar: pela paz, contra o terror