Puerpério e pandemia, um capítulo difícil de contar!

 Como mães e pais tem vivido o nascimento de um filho durante na pandemia? O texto de Renata Calife Fortes trata de questões relacionadas a essa experiência. Confiram!


PUERPÉRIO E PANDEMIA, UM CAPÍTULO DIFÍCIL DE CONTAR!

Renata Calife Fortes

O casal que está à espera do bebê sonha, planeja como será o parto, que nome será dado ao menino ou menina, com quem será parecido, as lembrancinhas, a decoração do quarto, a maternidade. Enfim, estes aspectos, que por vezes tomam um caráter material, tem a função de criar uma rede de afetos que conta para o bebê a sua história familiar, mesmo antes de ele ter nascido.

Este ano, a história precisou incluir o capítulo da Pandemia. A clínica psicanalítica tem escutado a dificuldade dos casais em encaixar este desdobramento real no cotidiano da nova família com um novo bebê.

Quando nasce um filho, o casal, ao deparar-se com a nova função, faz uma ressignificação de suas identificações. Há de se incluir na sua auto imagem de mulher, filha, profissional, irmã e tantas outras, a função de mãe. O mesmo se dá com o pai. Vestir esta nova roupagem causa desamparo. Sabiamente, nossas gerações anteriores, certamente trazendo aspectos de nossa ancestralidade, cuidavam de filhos e filhas em conjunto, dividiam quintais. O grupo, geralmente formado por mulheres, assegurava diariamente a nova mãe a sua capacidade em maternar. Atualmente, as avós, os familiares, as babás, ainda cumprem a função importante de dar suporte a nova família neste primeiro momento de vida do bebê, mesmo que ao longo da criação do filho ou filha a mulher ainda vivencie muita solidão. No início do puerpério, este convívio, se for feito de forma respeitosa, é reparador de noites mal dormidas, de conversas monotemáticas sobre fraldas e cólicas, de choros, e um sem fim de mamadas ou mamadeiras. Estes encontros fazem o casal lembrar de quem eram antes da experiência tão carregada de afeto e estranhamento.

Toda esta convivência ficou suspensa por conta da Pandemia que estamos vivendo. Os casais estão sozinhos na aventura de parir uma nova criança. Não há visitas na maternidade. Em casa, as visitas estão suspensas. Muitos dos avós pertencem ao grupo de risco e as famílias estão temerosas com o contato familiar. Os espaços comuns dos condomínios ou parques que poderiam ser frequentados após algumas semanas ou meses estão fechados ou frequentá-los não tem sido muito prazeroso. Estamos com medo. A tecnologia ajuda, mas nenhuma tela digital por, mais recursos que tenha, consegue dar profundidade suficiente ao convívio familiar. Ficamos todos achatados em algumas polegadas e um tanto de angústia. Ouço alguns relatos destas mães que inclusive questionam se lhes é permitido ser feliz num momento tão devastador do mundo atual. Tantas outras têm feito um esforço enorme para emprestar esperança ao bebê, pois está atravessada pela depressividade do momento.

Há, entretanto, um outro lado. Toda história tem dois lados, certo? Nunca os casais tiveram tanta intimidade com o bebê. Na maternidade, sem visitas nem barulho, se propuseram a observar e escutar o recém-nascido sem interferência. Lá, num ambiente seguro, sentiram-se autorizados a iniciar as primeiras lições sobre banho, fralda, mamadas que marcam o início de um processo de aprendizado sem fim. Os pais estiveram mais em casa. Trabalhando em home office, foi possível subverter o desvio social absurdo que propõe uma licença paternidade de cinco dias ou no máximo uma semana. Dessa forma parece que a equipe tem seguido coesa.

Incluir o capítulo da Pandemia no puerpério, requer resiliência e criatividade. Por vezes funciona, por vezes parece um remendo. Não deixa de sê-lo. Se nos perguntássemos hoje, como seria viver uma pandemia, ninguém acreditaria.

Uma jovem mãe, dias após dar à luz, disse ter interpelado a sua própria mãe,

perguntando: “por que você não me disse que seria assim?”. E a avó respondeu: “porque você não acreditaria”. A avó tinha razão, é preciso um pouco de ficção e um tanto de amor para experienciar a maternidade, principalmente se ela vier atravessada por um mundo quase distópico e um tanto assustador. A clínica psicanalítica se propõe a ouvir esta nova família na subjetividade de sua própria história.

Renata Calife Fortes é formada em Administração de Empresas e Psicologia. É psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientae e autora de Transferência e Feminilidade (2012); Mãe e Filha: uma refeição tão delicada (2013); Morreu a mãe morta ( 2014) e Considerações sobre um caso de Psicose Puerperal ( 2015).

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