Sobre a Transferência Online: uma nova Modalidade?

Em tempos pandêmicos, o texto da colega Marcela Assef especula sobre as mudanças que o atendimento online trouxe à clínica psicanalítica. Confiram:


SOBRE A TRANSFERÊNCIA ONLINE: UMA NOVA MODALIDADE?

Marcela Assef

O atual cenário de pandemia da COVID-19 impôs a todos, abruptamente, uma grande mudança de vida. É isto que configura, dentre outras coisas, o traumático: um acontecimento que desorganiza a ordem e causa grandes mudanças sem que o sujeito esteja previamente preparado. Para nós, analistas, sem dúvida uma grande mudança foram os atendimentos online: o que era exceção passou a ser regra e, do dia para a noite, nos vimos nos organizando para garantir não apenas a análise de nossos pacientes, mas, também, o enquadre analítico.

Ao longo deste período em que estamos há  meses confinados, artigos e "lives" que tem como tema central, justamente, os atendimentos no plano do online - as perdas inerentes ao remoto, o fato de estarmos compartilhando da mesma realidade do paciente, o novo manejo e um novo contrato são algumas das pautas sempre pertinentes que mais circulam entre os colegas.

Na minha clínica, um fenômeno interessante tem acontecido: a chegada de pacientes para análise neste novo formato. Com este fato, um pensamento que me rodeia é sobre a questão transferencial. É claro que este é um tema que sempre está em evidência, tanto no online quanto no presencial, mas me inquieta as seguintes questões: como vai se estabelecer a transferência com estes pacientes? Ela teria alguma especificidade por ser um atendimento remoto? Quem seria este Outro imaginário do outro lado da tela para o paciente?

Parto de reflexões para pensar a relação transferencial dentro de um cenário que provavelmente chegou para ficar e que, portanto, nós, enquanto analistas, nos veríamos cada vez mais diante de uma tela e tendo que sustentar e manejar uma "transferência virtual".

A psicanálise acontece dentro do campo transferencial, isso não há dúvida. Então, teoricamente, não haveriam diferenças entre o presencial e o remoto, pois o analista estaria exercendo sua função e sua escuta analítica independentemente das circunstâncias (grandes exemplos seriam os acompanhamentos terapêuticos e a clínica pública de psicanálise - dispositivos estes que operam brilhantemente com um fazer psicanalítico para além do setting do consultório).

O acompanhamento terapêutico e a clínica pública têm algo em comum com o atendimento online, a saber, o fato dos três se realizarem fora do contexto usual do consultório particular. Ao mesmo tempo, o atendimento remoto difere dos outros dois em uma característica que, para mim, não é pouco relevante: a presença do corpo. No momento em que fomos pegos com a passagem do presencial para o remoto, pode-se pensar que os pacientes já haviam estabelecido uma transferência previamente. Iam até o consultório, sentavam-se na poltrona ou se deitavam no divã, ficavam na sala de espera até serem chamados. Tudo isto, a meu ver, contribui para a instauração da transferência. 

Agora, com uma nova procura por análise online, estes pacientes não contariam com a presença dos elementos físicos do setting e nem do corpo do analista. Ao contrário, tem metade de um corpo, um corpo parcial. 

Shmuel Erlich (2008) discorre sobre a diferença entre situação psicanalítica e espaço psicanalítico. Para ele, uma situação é objetivamente descritível, ligado ao plano da realidade física. Por outro lado, o espaço psicanalítico seria aquilo criado pela dupla terapêutica, não estando em um lugar para ser visto, ocupando um lugar psíquico operacional. Ao mesmo tempo, a realidade psíquica não está separada da realidade externa. Ora, desta forma, é possível pensar que mesmo não tendo os elementos objetivos da situação psicanalítica, de um lugar físico com poltrona, divã e a presença do corpo do analista, este está incumbido "em transformar fatos físicos, concretos, em experiência psíquica significativa" (Erlich, 2008).

Freud (1912), quando discorre sobre o conceito de transferência, anuncia que ela não pertence única e exclusivamente a relação analítica, estando presente na maneira como o sujeito se relaciona com os seus outros pares. O que seria intrínseco da análise e do trabalho do analista seria saber operar o manejo da transferência para ela possa se tornar motor do tratamento e não resistência. Nessa mesma direção, Freud aponta que é trabalho do analista propiciar que haja espaço para a instalação da transferência por parte do paciente, o que geraria uma certa neutralidade por parte do analista para que conteúdos imaginários e inconscientes pudessem ser projetados em sua figura.

Partindo deste princípio de neutralidade, que não vem ao caso neste momento discorrer sobre o que se trata essa neutralidade e se ela realmente existe, os pacientes estariam esperando não do lado de fora do consultório, mas em suas casas, assim como o próprio analista, que iniciaria o atendimento de dentro de sua casa, de algo até então que era privado. O paciente poderia ver um quadro, escutar uma voz, ver uma estante ou escultura que pode lhe chamar a atenção. Pode-se pensar que a existência da tela acarretaria em uma distância maior entre a dupla que está começando a se formar, o que implica, então em uma perda tanto para um quanto para o outro, mas, por outro lado, justamente pelo paciente poder acessar algo de "pessoal" do analista, que talvez não estivesse presente no consultório, poderia ser igualmente ou mais frutífero para que os conteúdos transferenciais possam começar a se instalar e a circular.

Encerro este texto com mais pensamentos e reflexões acerca desta nova realidade que nós, analistas e pacientes, estamos vivenciando. É um tema delicado por ser algo da ordem de que não existe uma concepção previamente estabelecida. Estamos construindo, re-organizando e re-inventando uma clínica atravessada por uma realidade avassaladora procurando manter a ética da teoria psicanalítica.

Marcela Assef é psicóloga, psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e integrante do Núcleo de Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP.

Referências Bibliográficas:

ERLICH. S. (2008): Trauma coletivo e o espaço psicanalítico. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Israel (SPPA), v. 15, n. 1, p. 157-171, abril 2008

FREUD. S. (1912): A dinâmica da transferência. Obras Completas, v. 10, Ed. Compainha das Letras, 2010

Comentários

  1. Marcela: muito interessante a diferenciação que você propõe entre espaço e situaçao psicanalitica. Só lembrando a você que a forma como arruamamos nossa sala de trabalho no consultório também nos revela enquanto pessoas. Obrigada pelo seu texto. Eva

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