Reflexões durante a pandemia sobre o tema: “o ser humano é um ser social”
Hoje, o Blog apresenta o texto de nossa colega Fernanda Borges que traz, com saudades, a paisagem da praça pra dentro de nossas casas.
Espero que vocês gostem, bom passeio.
REFLEXÕES
DURANTE A PANDEMIA SOBRE O TEMA: “O SER
HUMANO É UM SER SOCIAL”
Lembro de quando minha filha nasceu. Eu passava
grande parte do dia sozinha com ela. As visitas durante a semana eram raras. As
horas eram solitárias e o cansaço resultante das noites mal dormidas era
grande. Entre as mamadas e as trocas de fraldas, haviam as deliciosas manhãs de
sol na rede da varanda, as sonecas conjuntas no meio do dia, as descobertas, os
momentos em que dançávamos juntas na sala de casa, as idas à feira logo ali na
esquina - lugar cheio de vida, de
pessoas, de sons, de cheiros, de cores e sabores. Assim era o nosso universo
nos seus primeiros meses de sua vida. Mas ele foi ficando pequeno.
Aquela pequena criatura se desenvolvia a cada
semana, tornando-se cada vez mais capaz de novos desafios. Pouco a pouco eu
sentia em nosso cotidiano a necessidade de ampliar o território e o horizonte.
E assim seguimos: da casa à feira e, depois, ao bairro. Nos passeios a pé, por
caminhos antes feitos somente de carro, descobrimos lugares desconhecidos,
dentre eles, um muito especial: a nossa querida pracinha. Mães, avós e babás
com seus bebês e crianças pequenas se reuniam para passar algumas horas da
manhã ou da tarde. Ali as pessoas formavam uma pequena comunidade. Cada qual saía
da solidão de seu lar, da mesmice de sua própria família e de seus dramas
particulares, para encontrar outras histórias, outros jeitos de cuidar, outros
modos de estar e brincar. Novos laços de amizade e solidariedade eram
construídos. Nosso pequeno mundo crescia e se enriquecia. E assim foi ao longo
dos anos: da praça à escola, da escola ao clube, depois ao inglês etc. Seu
ingresso no mundo e seu crescimento passava, assim como passou e passa para
todos nós, pela inserção em múltiplas comunidades, de diferentes tamanhos e com
distintas finalidades (família, bairro, instituições de ensino, esporte,
cultura e lazer etc.), com as quais constituímos variados vínculos e modos de
pertencimento.
Em março de 2020, diante da pandemia, nos vimos
obrigados a permanecer em nossas casas. As pessoas que não moravam sozinhas restringiram
suas conversas ao vivo e “em carne e osso” assim como suas demonstrações
físicas de afeto àqueles que estavam logo ao lado – cônjuges, companheiros,
filhos e enteados. Através da internet, das redes sociais, das lives, dos
cursos onlines, dos filmes, dos livros, dos encontros virtuais alguns tentaram compensar
as perdas, desfrutar de antigos prazeres ou encontrar novos. Mas chega um tempo
- para uns antes, para outros depois e para alguns talvez não chegue - que
falta concentração para ler, para ver filmes, para se manter diante das telas.
É possível atribuir tal fenômeno ao efeito da exigência de trabalho psíquico
frente a tantas mudanças, perdas, receios, necessidades de adaptações diante
das circunstâncias impostas e desilusões. Talvez seja o tal “animal social”, o
ser humano que constrói a si mesmo a partir, através e na relação com outro,
que não tenha encontrado ainda caminhos suficientes para se satisfazer. Talvez
seja o apelo do desejo de ação – ação agora concentrada ou mesmo aprisionada no
recôndito do lar – de se expandir, de ganhar campo, de tomar forma, de
encontrar o outro e de fazer comunidade.
Quanto a mim, particularmente, acho curioso reviver
um isolamento e um retraimento agora não apenas em nome de uma vida – a de uma
criança recém-nascida – mas em nome de muitas vidas: a de nossos familiares,
vizinhos e de uma comunidade mais ampla. Mães e pais, sabem bem o custo desse
retraimento, mas enfrentam as restrições vividas com a chegada de um filho em
nome de algo maior. Eles também sabem que tais restrições são temporárias,
diminuem gradualmente ao longo dos anos e que podem contar com a ajuda de
outras pessoas. Será que podemos dizer o mesmo deste período de isolamento
diante de tantas incertezas (como por exemplo, quanto tempo demora para
fabricar uma vacina segura?), da dispensa de funcionários que ajudavam no
cuidado da casa, do fechamento de escolas e de instituições de esporte, cultura
e lazer? A restrição parece maior, o tempo tem se alongado mais do que o
esperado inicialmente, a ajuda parece de menor alcance. Assim como no primeiro
ano de vida de minha filha, o universo doméstico e familiar tem ficado pequeno
e a necessidade de ampliá-lo urge. A tela ficou pequena! O vínculo online não
satisfaz o desejo do encontro corpo a corpo, cara a cara, olho no olho, com
perspectiva e profundidade, cheio de sons, cores e sabores.
Uma vez vi uma pichação num tapume:
"Vejo prédio, sinto tédio. Vejo praça, acho
graça"
Hoje brinco com ela e penso:
"Vejo
tela, canso dela. Quero graça, cadê a minha praça?!"
Fernanda
Borges é psicóloga, mestre em psicologia social (IPUSP), psicanalista
e membro aspirante do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
Adorei, muito bom mesmo, retrato da nossa realidade atual e encerrou o texto com uma bela pergunta. Parabéns!
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