Carta à “analista em linha

O Blog publica hoje o texto-carta para uma analista em linha, escrito por Renata Calife Fortes.

 

CARTA À “ANALISTA EM LINHA” (1)

Renata Calife Fortes 

Em março de 2020 todas as portas automáticas se fecharam. Esta imagem me remeteu a deliciosa série do Agente 86 exibida nos anos 70, você se lembra? Nela, o personagem andava e as portas iam fechando-se atrás dele num ritmo constante, até que ele se deparava com uma cabine telefônica. Era o recurso que restava.

Você me comunicou que os atendimentos passariam a ser realizados em linha. Fiquei sabendo que os analistas estavam testando algumas modalidades: com ou sem tela. Pensei que de acordo com cada atendimento, o perfil do paciente, os sintomas, o momento da análise, escolheriam um recurso em detrimento ao outro. Eu, era uma paciente que já usava o divã, fato que, confesso no meu imaginário, dava um ar de maturidade ao meu processo analítico, fiquei aguardando meu veredicto. Fui alçada a categoria, “só linha”. Do lado de de quem fala, não houve um questionamento sobre a identidade do processo. Seria ou não seria uma análise? Vocês psicanalistas deviam estar obsessivamente falando, escrevendo, pensando, fazendo “lives” para narrar a sobrevivência da psicanálise na era digital. Deve ter sido um desafio e tanto. Eu estava tentando saber como seria a ligação.

Falaríamos alô? Telefonaria no horário ou esperaria você ligar? Será que você atenderia sozinha no consultório? Na mesma poltrona? Será que enquanto eu falasse você teria vontade de ficar rabiscando ou anotar? Estou ouvindo um barulho, não me lembro dele no consultório? Talvez você esteja na cozinha. Estava me atendendo e refogando o feijão? Às vezes sua voz parecia cansada. Me dava uma vontade de falar: “Olá! Como vai? – Eu vou indo. E você, tudo bem? - Tudo bem! Eu vou indo correndo pegar meu lugar no futuro ...”(2), sabe dar certa musicalidade ao telefonema, afinal, a pandemia deixou a vida muito sem graça.

Deve ser difícil atender em linha, talvez uma experiência próxima a falar horas e horas a fio um idioma estrangeiro. Como se você estivesse me atendendo em inglês, entende? E eu, onde receberia esta ligação? No meu quarto não era possível, o marido pode precisar entrar, os filhos podem escutar. E o fone de ouvido, sem fio ou com fio? Onde a internet pega melhor? E se eu chorar preciso soluçar alto para mostrar as lágrimas? O interfone tocou no meio do atendimento, me distraio. É ato falho ou somente entrega do Rappi? Tipo, um Rappi é só um Rappi?

Encontrei um lugar no jardim do prédio para fazer análise. Era rezar para não chover. Com o tempo, fui percebendo que a ligação telefônica era preciosa, me dei conta que há muito tempo deixamos de ligar para alguém. Todas as nossas necessidades práticas são resolvidas em aplicativos e mensagens. Tinha me esquecido da voz. Por falar em telefone, me lembrei da minha avó, ou por falar em voz.... vó, voz, avós (viu, está acontecendo). Todo dia, por volta das 18 horas, ela sentava-se numa poltrona que parecia ser bem confortável e ligava para algumas amigas. Elas conversavam muito; entre um ‘’hã’, “não me diga” e “Jesus misericórdia”, ela gargalhava. Ressoa em mim a voz dela.

Na vida adulta, me lembro da minha mãe me ligando todos os dias quando eu mudei de cidade para saber como eu estava. Às vezes era controle, às vezes era cuidado, linha tênue esta, não?

Lembro de um episódio ruim também: um parente estava exilado e quando ligava para minha casa, meu pai sussurrava ao telefone e depois, nós, crianças, éramos orientados a não comentar com ninguém sobre aquela ligação. Pelo que lembro, diziam que algumas pessoas achavam estas ligações perigosas. Demorei a entender que o perigo estava no planalto central e não na ligação telefônica. Como você pode ouvir, contínuo em análise, sonhando, lembrando, metaforizando. O meu inconsciente parece ter virado uma cabine telefônica. Fico imaginando as telefonistas que moram dentro de mim conectando e desconectando fios. Às vezes, as conexões são ótimas, às vezes causam chiado, chorado.

Tudo isto para dizer que estamos em linha. O telefone sem fio que nos possibilitou o encontro desfilou palavras, narrativas, significantes. Agradeço o esforço e desafio. Te ligo na semana que vem, no horário e data combinados. E um dia quando esta ligação terminar, vou adorar receber uma mensagem sua dizendo: “enquanto te atendia, rabisquei laços e dei uma olhada no feijão”. Gargalho por aqui. A psicanálise resiste.

Aquele abraço.


Renata Calife Fortes é formada em Administração de Empresas e Psicologia. É psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae e autora de Transferência e Feminilidade (2012); Mãe e Filha: uma refeição tão delicada (2013); Morreu a mãe morta (2014) e Considerações sobre um caso de Psicose Puerperal (2015).  

 

(1)   utilizo este termo que foi referido e proposto por Lia Pitliuk em artigo sobre o tema publicado na Revista Percurso 64.

(2)   Sinal Fechado. Chico Buarque 

Comentários

  1. Adorável texto, Renata!

    E haja telefonistas internas para conectar e desconectar nossos fios...

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  2. Maravilhoso. Não passa ao largo do que está acontecendo

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  3. Renata: muito saboroso seu texto. Cá estamos apesar de tudo. Eva

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  4. Muito linda e sensível essa carta. A trapezista-analista/andarilha/anda/atravessa a linha com delicadeza e dá uma pirueta na pandemia para continuar sua obra com as palavras, no equilíbrio sutil dos fios que criam conexões.

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  5. Muito delicada e verdadeira a sua carta, Renata. Um prazer ler.... Obrigada! - Lia Pitliuk

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