Eleição, Alienação, Identificação
Nosso
colega Ivan Martins analisa o resultado do segundo turno da eleição para
prefeito de São Paulo.
Confira:
ELEIÇÃO, ALIENAÇÃO, IDENTIFICAÇÃO
Por
Ivan Martins*
É
natural que um partido político que representa a elite econômica do país vença
sistematicamente as eleições na periferia pobre e abandonada de São Paulo?
Eu
me fiz essa pergunta no domingo, quando ficou claro não apenas que o candidato
do PSDB venceria de novo, mas que o faria de maneira categórica, ganhando em 50
das 58 zonas eleitorais e entregando ao candidato da esquerda a pior derrota em
segundo turno nos bairros afastados desde 1996.
O
que faz com que uma multidão de trabalhadores precarizados, cujas vidas são
regidas por escassez e instabilidade, votem repetidamente no partido das
classes abastadas, cujo programa essencial tem sido, nas últimas três décadas, ampliar
e aprofundar a precarização?
A
explicação geral desse fenômeno foi dada por Marx no século XIX com o conceito
de alienação política: a ideologia dominante em qualquer período é a ideologia
da classe dominante; os explorados adotam a visão de mundo dos exploradores.
Mas
a psicanálise talvez torne possível aprofundar a compreensão dos mecanismos
psíquicos pelo qual a alienação se instala, convertendo o sujeito político em
servo voluntário das ideias e do interesse do outro.
A
essência desse mecanismo é a identificação,
uma forma de ligação afetiva primitiva, contemporânea da oralidade, que, nas
palavras de Freud, “se empenha em configurar o próprio Eu à semelhança daquele
tomado como ‘modelo’”.[1]
Sabemos
que os objetos-modelo da identificação são muitos: pais, irmãos, amigos, professores,
chefes, patrões, amantes, ídolos e quem mais ganhe significado afetivo para o Eu.
Esses objetos de afeto têm ideias e atitudes que deixam traços no sujeito e
contribuem para a construção do ideal do Eu, a instância psíquica que orienta
aspirações e serve de medida para a auto avaliação.
Quando
publicou Psicologia das Massas e Análise
do Eu, em 1921, Freud estava preocupado em identificar os mecanismos
psíquicos que conectam as multidões politicamente mobilizadas a seus líderes. Concluiu
que os integrantes dessa massa introjetam o líder como Ideal do Eu e assim
passam a se deixar guiar por ele. Esta seria a chave de leitura para explicar o
fanatismo em torno de Jair Bolsonaro, por exemplo.
Mas
o fenômeno do PSDB em São Paulo parece ser de outra natureza. É algo mais nuançado,
mais sutil, despersonalizado, que envolve múltiplas identificações - uma
situação mais próxima da complexidade da vida cotidiana, que Freud descreveu da
seguinte maneira:
“Cada
indivíduo é um componente de muitos grupos, tem múltiplos laços por
identificação, e construiu seu ideal do Eu segundo os mais diversos modelos.
Assim, cada indivíduo participa da alma de muitos grupos, daquela de sua raça,
classe, comunidade de fé, nacionalidade e etc., e pode também erguer-se além
disso, atingindo um quê de independência e originalidade”.[2]
O
que parece acontecer na periferia de São Paulo é que passaram a predominar ali,
nos últimos anos, identificações alienadas – chamemos assim, embora toda
identificação contenha algo de alienação ao desejo ou ao olhar do outro - com
ideais ultra capitalistas, que enfatizam valores como competição, meritocracia,
individualismo e até mesmo a inconveniência do Estado.
Não
há nada de intrinsicamente errado com essas ideias, mas na periferia caótica de
São Paulo elas estão visivelmente fora do lugar. O mercado já está lá, bem
instalado em sua barbárie. É preciso que chegue também a sua contrapartida, o
Estado, com instituições e serviços. É preciso que opere ativamente a
solidariedade. Na periferia não faltam mercado e nem espírito capitalista. Eles
sobram.
Muitos
pobres, contudo, não se veem mais como parte de uma massa de explorados ou
excluídos que partilham alguma forma de destino comum, mas como indivíduos isolados,
de maior ou menor valor pessoal, com mais ou menos capacidade de vencer, que
rivalizam entre si no tudo ou nada do mercado.
Isso
é ideologia, que talvez possa ser definida como a incidência dos valores da cultura
sobre as identificações pessoais. Dessa mistura emerge a visão de mundo do
sujeito, que frequentemente desafia a realidade.
Boa
parte dos motoqueiros, diaristas e manobristas de São Paulo não se percebem como
vítimas do modelo econômico excludente, mas como sócios menores do sistema.
Eles são “empresários” que trabalham 16 horas por dia, orgulhosamente, sem
proteção ou garantia. Muitos não querem ser confundidos com gente que precisa
dos serviços públicos ou dos programas de assistência do Estado.
No
passado recente, economia e cultura estavam organizadas de tal forma que aos
jovens da periferia eram oferecidas identificações alternativas – e por vezes
antagônicas – às da classe dominante. Elas podiam ser encontradas nas escolas,
no trabalho ou na militância cristã das comunidades eclesiais de base, para citar
três exemplos.
Com
exceção das escolas, o resto desapareceu.
As
CEBs foram destruídas no pontificado de João Paulo II e seu espaço na periferia
foi ocupado, ampliado e aprofundado pelas igrejas pentecostais, que funcionam
como caixas de ressonância do mercado, elas mesmas atuando de forma
empresarial.
O
emprego formal, que historicamente fornecia pertencimento social e estabilidade
financeira aos pobres, abrindo a eles inclusive a possibilidade de organização
coletiva, foi sendo substituído pelo “empreendedorismo”, forma de subemprego instável
e predatória que isola as pessoas no desamparo e as afasta umas das outras – produzindo,
frequentemente, uma ética grotesca de capitalistas sem capital.
Nunca
foi fácil se contrapor à ideologia dominante, é verdade, mas o desaparecimento
dos empregos e a corrosão da solidariedade tornou tudo mais difícil. O antigo
proletariado não era naturalmente socialista e nem muito menos revolucionário,
mas tampouco era capitalista. Sua lealdade política costumava estar com gente
como Getúlio Vargas e Lula, de alguma forma identificada a seus interesses de
classe. O precariado paulistano parece ter outra constituição ideológica. Pode
ter sido cooptado de forma mais profunda pelas ideias que justificam a sua própria
exclusão.
Se
essas identificações alienadas de fato ajudam a explicar o comportamento
político das periferias, a boa notícia é que talvez seja possível modificá-la
com o surgimento de outras identificações.
O
voto majoritário dos jovens na chapa do PSOL, assim como a eleição de vereadoras
negras ativistas pela legenda, sugere que mesmo em circunstâncias econômicas e
sociais adversas há potencial para construção de ideais do Eu que não emulem os
da juventude burguesa, machista e branca dos Jardins.
O
antirracismo parece mobilizar afetos tão profundos que eles talvez não caibam nas
racionalizações meritocráticas e justificatórias dos privilegiados que se
organizam em torno do PSDB.
Outra
possível boa notícia se encontra no próprio mecanismo psíquico da
identificação. Como Freud sublinhou, “a identificação é ambivalente, pode
tornar-se tanto expressão de ternura como desejo de eliminação. Comporta-se
como um derivado da primeira fase, a fase
oral da organização da libido, na qual o indivíduo incorporou, comendo, o
objeto desejado e estimado, e assim o aniquilou enquanto objeto”.[3]
É
possível, portanto, que as promessas infundadas de redenção capitalista que
estão sendo semeadas na periferia da maior metrópole do país se voltem contra os
seus autores como um tsunami de ressentimento. Frente a uma realidade que
insiste em produzir miséria, exclusão e violência, pode emergir o afeto
negativo ligado às identificações alienadas.
Não
seria a primeira vez que os habitantes antropófagos das malocas de Piratininga devorariam
os seus insaciáveis e pálidos senhores.
*
Ivan Martins é psicanalista, aluno
do curso de Psicopatologias Contemporâneas do Sedes e autor dos livros “Alguém
especial” e “Um amor depois do outro”.
[1]
Freud, Sigmund. Psicologia das Massas e Análise do Eu. Obras Completas, V.15,
P.62. Cia das Letras
[2]
Freud. Idem. P.92
[3]
Freud. Idem. P.61
Os jovens dos jardins e de todos bairros de classe media alta votaram no Psol ....
ResponderExcluir