Uma situação inesperada: efeitos do ódio como discurso político
O
Blog do Departamento de Psicanálise encerra as atividades do ano com o belo
relato de Maria Laurinda R. Souza,
professora do Curso de Psicanálise. Seguimos pensando e elaborando
conjuntamente em 2021!
UMA
SITUAÇÃO INESPERADA: EFEITOS DO ÓDIO COMO DISCURSO POLÍTICO
Mas existe nesta terra/muito homem de valor/...que gosta de sua gente/
e que luta a seu favor, como Gregório Bezerra, feito de ferro e de flor.
(Ferreira Gullar. História de um Valente)
Um
dia, a senhora que trabalha em minha casa, ao perceber meu interesse pelos
livros, entregou-me uma pequena pasta com folhas soltas e me pediu para tentar
fazer uma publicação. Explicou-me que o
pai lhe entregara esses textos quando estava muito doente pedindo que os
guardasse com cuidado e, se um dia fosse possível, os tornasse públicos.
Tinham, para ele, um grande valor afetivo pois foram escritos por seu irmão que
havia sido perseguido, torturado e expulso do país. Um pouco constrangida por me fazer o pedido,
mas fiel ao pedido do pai, confidenciou-me que seu tio era nazista. Guardei a
pasta um tanto preocupada, mas também curiosa em saber o que teria escrito esse
tio nazista.
Não
olhei o material porque a pandemia e também uma série de outras tarefas me
ocuparam, mas a curiosidade se manteve.
Um dia meu filho me perguntou sobre esse escrito nazista. Abrimos a
pasta e nos deparamos com um pequeno volume de folhas que fazia uma homenagem
aos 83 anos de idade de Gregório Bezerra, celebrados no dia 13 de marco de
1983. Na folha inicial, a Comissão organizadora da festa fazia um manifesto de
“permanente solidariedade a este homem que alcança uma idade bem além da média
dos brasileiros, mantendo a capacidade de luta e a coerência que o
impulsionaram desde a juventude”. Para isso, organizou-se um dia inteiro de
manifestações no Centro de Arte Popular de Olinda, com tribuna livre,
declamadores, violeiros, cantadores e artistas populares. Seguia-se, nas outras
folhas, um resumo das memórias desse importante militante, fotos com políticos
de sua geração e várias cenas de participação em encontros populares.
Fiquei
profundamente surpresa, impactada com a confusão das nomeações (comunista=nazista)
e admirada com a importância desse tio.
Quem
foi Gregório Bezerra? Sua história de vida tem semelhança com os sofrimentos de
grande parte da população brasileira. Sua luta política foi marcada pela busca
da justiça e igualdade e combatida pelo poder oficial com violência,
perseguição e ódio.
Nasceu
em março de 1900, numa pequena, pobre e seca comunidade chamada Panelas, cerca
de 200 quilometros do Recife. Em 1905, a família, desesperada, fugiu da seca
procurando um lugar onde houvesse pão e água. Nesse ano morrem dois de seus
irmãos e Gregório, com apenas 4 anos, vai trabalhar na coleta de cana, quase 14
horas por dia. Em 1907 morre seu pai, vítima de um grave acidente de trabalho
no armazenamento da cana e, logo depois, como retirante, morre sua mãe, vítima
de pneumonia. Aos 10 anos vai para Recife trabalhar como empregado numa casa de
família que lhe prometera proteção e encaminhamento para os estudos. Dois anos
depois, em função dos maus tratos, foge e vai viver nas ruas. Aos 16 anos
torna-se operário da construção civil; ajudante de pedreiro, carregador de
sacos nos armazéns da cidade ou de carvão de pedra. É quando começa a
participar dos movimentos reivindicatórios: jornada de 8 horas, aumento de
salários e melhores condições de vida. Preso, é condenado a 7 anos de prisão,
cumprindo 5. É absolvido em novo julgamento por falta de provas. Em 1922, ainda
analfabeto, alista-se no Exército, em Recife. É lá que se dá sua formação
escolar, tornando-se instrutor de educação física. Alista-se no partido
comunista e participa, em 1935, da “intentona comunista”, levante promovido
pela Aliança Nacional Libertadora (ANL). Preso na ditadura Vargas é torturado,
expulso do exército, é condenado a 28 anos de prisão pelo Tribunal de Segurança
Nacional. Divide cela com Luis Carlos Prestes, secretário geral do PCB.
Em
1945 é anistiado e participa da campanha por uma Assembléia Nacional
Constituinte. Elege-se deputado federal. Cassado, preso, torturado, perseguido,
participa nas lutas clandestinas pelos direitos dos operários e camponeses,
pela reforma agrária e pela paz.
Em
1964 é preso pelos militares, espancado e torturado, sendo arrastado pelas
principais ruas de Recife. Em 6 de setembro de 1969 é um dos presos políticos
trocados pelo embaixador americano que havia sido sequestrado. Volta do exílio
em 1979, com a anistia. Descrito por Ferreira Gullar, em seu poema de cordel História
de um valente, como homem de ferro e de flor que não teme a luta, filia-se
ao PMDB e lança-se como candidato a deputado federal. Diz aos trabalhadores que
“é importante caminhar, avançar, não ter medo”. Participa da vida política do
país até o ano de sua morte. Faleceu em setembro de 1983.
Este
importante dirigente do Partido Comunista Brasileiro, passou 22 anos de sua vida
preso em função de sua atividade política. Antes de morrer, declarou: Gostaria
de ser lembrado como o homem que foi amigo das crianças, dos pobres e
excluídos; amado e respeitado pelo povo, pelas massas exploradas e sofridas;
odiado e temido pelos capitalistas, sendo considerado o inimigo número um das
ditaduras fascistas. Oscar Niemeyer projetou um memorial em sua homenagem
que ainda não foi construído.
Surpresa
com toda essa descoberta e com a história deste homem, pergunto à sobrinha que
trabalha em minha casa se sabe quem foi seu tio. Diz-me que não. Seu pai tinha
medo de falar sobre ele. Medo das perseguições e da violência que podiam
atingir os familiares? Ela parece concordar; tem até receio de falar disso com
um dos filhos que é ligado aos movimentos de esquerda. Vou conversando e
percebo a confusão e a equivalência imaginária instituída entre nazista e
comunista. Nomes dos quais se tem medo.
As
ditaduras e a repressão deixam marcas imaginárias que se difundem nas gerações
seguintes. O imaginário sobre o termo “comunista” continua presente nos
discursos políticos de ultradireita, como forma de acirrar o combate, o medo e
o ódio aos possíveis adversários.
Profundamente
grata pelo gesto de confiança por me ter apresentado esses textos e a história desse
tio, retribuo o gesto com o livro Memórias de Gregório Bezerra, reeditado
pela Boitempo e que indico aos que desejem conhecer a intimidade desse período
da história política brasileira. As folhas soltas que ela me apresentou estão
incluídas nesse livro e, portanto, publicadas como era o desejo de seu pai.
Maria Laurinda R. Sousa é membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae, professora do curso de Psicanálise, autora de Violência e Vertentes da Psicanálise (ambos da Coleção Clínica Psicanalítica), Quem é você? (contos infantis) e outros.
Laurinda! Que beleza essa história de tragicidade e encantamento...
ResponderExcluirE o acaso do encontro entre a sobrinha de Gregório Bezerra e vc se mostra como uma espécie de necessidade do mundo de não calar a voz desse homem valente. Tocante.
Adoro ler Laurinda, amiga querida sensivel, criativa! Refinada com simplicidade na escolha das palavras que descreve as coisas da vida. E por ser assim é capaz de trazer veracidade nas páginas a essa imensa humanidade que tem na alma.
ResponderExcluirAdoro ler Laurinda, amiga querida sensivel, criativa! Refinada com simplicidade na escolha das palavras que descreve as coisas da vida. E por ser assim é capaz de trazer veracidade nas páginas a essa imensa humanidade que tem na alma.
ResponderExcluir“Feito de ferro e flor”, força e delicadeza que descrevem tanto Gregório Bezerra como você, Laurinda. Nesse raro encontro de força, integridade e luta com a poesia, lealdade e as fragilidades surge o Humano. Lindo encontro! Lindo texto! Bela história!!!
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