HOME OFFICE
O trabalho em home office se intensificou durante a pandemia e parece que veio para ficar. Por isso, procuramos para conversar nossos colegas do Projeto Laborar: saúde psíquica do trabalhador que atende trabalhadores que tiveram sua saúde psíquica afetada prioritariamente pelo trabalho. Confiram a seguir a entrevista com Pedro Mascarenhas, membro da equipe desse projeto foi Pedro.
HOME
OFFICE*
1) Estudos mostraram que 46% das empresas no Brasil utilizaram o home office como meio de enfrentar a pandemia do coronavírus. Muitas empresas pretendem adota-lo de forma permanente: quais as vantagens e desvantagens para o trabalhador?
O teletrabalho e o home office já existiam antes da pandemia, em menor escala.
Mas,
na pandemia, transformou-se num laboratório de experimentação de práticas
laborais ligadas às práticas de precarização que já vinham em plena
implementação antes da pandemia. Sempre, no Brasil, convivemos com a intensa
exploração do trabalho e a consequente precarização ilimitada das vidas. Mas no
momento atual, pandemia mais crise econômica que no brasil vem se acirrando
desde 2008/2009 aproximadamente, temos como consequência a ampliação enorme do
empobrecimento e da miserabilidade da classe trabalhadora. As condições de
trabalho e de vida já vinham sendo progressivamente intensamente precarizados.
Não
estávamos vivendo num céu de brigadeiro antes da pandemia. A precarização da
vida, que já vinha acontecendo, devido a pandemia e a crise econômica atinge a
todos, mas particularmente as pessoas que dependem do trabalho para sobreviver.
É difícil falar do trabalhador em geral porque
é muito diferente a realidade dos trabalhadores, segundo o seu corte de classe,
gênero, raça e profissão.
As desvantagens podemos indicar
sumariamente em: maior individualização; aumento do distanciamento social intra
equipe de trabalho e entre trabalhador e
cliente; diminuição das relações solidárias e coletivas no espaço de
trabalho; maior distanciamento dos trabalhadores em relação as entidades
sindicais; tendência crescente a eliminação de postos de trabalho; fim da
separação entre tempo de trabalho e de vida; diminuição da separação entre
trabalho reprodutivo e produtivo; intensificação do trabalho invisível atribuído
às mulheres; eliminação dos horários de trabalho do cafezinho, isto é, coletivo
de conversa informal; a qualidade e o custo do aspecto ergonômico do espaço de
trabalho sobrecarrega o trabalhador, inclusive as doenças relacionadas ao
trabalho decorrentes desta condição não estão claramente explicitadas na
legislação; não existe regulamentação jurídica deste tipo de trabalho a
distância, abrindo espaço para abusos; defasagem grande entre a educação tecnológica
e a necessidade para o uso dos computadores, ficando a cargo do trabalhador
superar isso.
Vantagens para o trabalhador:
diminuição dos deslocamentos; maior liberdade de horários.
2)
Na pandemia a casa se tornou o lugar de trabalho, lazer, tarefas domésticas e
convívio familiar. Como isso tem afetado as pessoas?
Começando por mim. Minha principal
sensação com o trabalho neste período de pandemia é o cansaço. Parece que meus
ritmos vitais estão acelerados. Faço parte dos engaiolados, sim tenho uma
gaiola relativamente confortável de onde trabalho on-line. Muitos não têm
gaiola alguma e não podem permanecer em casa. Precisam sair para ganhar
dinheiro e se expor à contaminação. Eu, fico na gaiola onde preciso fazer,
junto com minha companheira, todos os serviços de manutenção doméstica. Não era
assim antes da pandemia. Os ritmos corporais mudaram e a separação entre o que
é profissional e o que é pessoal se borrou. Tudo imprevisível e precisa ser
muito pensado. Cansaço, angústia, tristeza e insônia se mesclam com prazeres
novos.
Vivemos uma aceleração e compressão do
tempo que tem nos levado à uma “sociedade do cansaço”. As novas relações
flexíveis de trabalho promovem mudanças significativas em nossa sociabilidade,
nossa forma de lidar com o tempo e com a auto referência pessoal, tendo em
vista que alteram a relação tempo de vida/tempo de trabalho. O tempo de vida é
colonizado pelo tempo de trabalho. O trabalho morto comprime o trabalho vivo. A
invasão da esfera da produção à da reprodução social tem demonstrado que, por
exemplo, os limites entre os horários de trabalho ou lazer e as interrupções
dos familiares sejam potenciais fontes de conflito, além da expectativa no/na
teletrabalhador (a) de que assuma mais responsabilidades quanto às demandas
domésticas, assim como, também, se acentuam as dificuldades no trato com as tecnologias.
Uma recente pesquisa da Escola de Administração de Empresas da FGV (Fundação
Getúlio Vargas) mostrou 56% dos trabalhadores tem problemas para conciliar os
dois universos. Lembrando que tudo isso se intensifica ainda mais quando
falamos de mulheres nesta condição do chamado home office.
3) O
que a observação na prática clínica tem a nos dizer sobre o trabalho em home
office? Como essas observações podem orientar empresas e trabalhadores na
implementação do trabalho em casa no período atual e pós pandemia?
A precarização da vida compreende
diversas alienações, coisificações humanas, de gênero, raça, etnia, sexos, e
devastações ambientais, que estão ocupando o centro de nossas vidas, se
intensificando, impondo ritmos estonteantes de corrosão do trabalho, degradação
ambiental, segregação humana e social, desprezo à ciência. Tudo, em última
instancia, para a valorização do capital, e para a manutenção da propriedade
privada e seu universo corporativo.
A produção social subordina-se ao
metabolismo do capital em vez de atender necessidades humanas. Resultando em
desemprego monumental, destruição ambiental, mercadorização da vida, novas
guerras e conflitos armados. Dissipa seres humanos, trabalho vivo, carne,
sangue, nervos e cérebro. Dissipadora do trabalho colaborativo e criativo que
incentiva a produção de reconhecimento e subjetividades produtoras daquilo que
chamamos de “comum”.
Nós do Projeto Laborar trabalhamos
na clínica, principalmente grupal, no atendimento de pessoas que se reconhecem
em sofrimento devido às condições de trabalho ou de desemprego. Consideramos,
junto com Dejours, a centralidade do trabalho na constituição da vida.
Em todas as nossas referências teóricas, além de Dejours, consideramos Freud e
outros psicanalistas para pensar a constituição da subjetividade.
Para
Dejours o trabalho é uma oportunidade de desenvolvimento contínuo dessa
subjetividade. Sendo assim o trabalho tem uma função central na vida dos
sujeitos que abrange diversas perspectivas:
desde a permanente possibilidade de construção do psiquismo e da
produção de subjetividade, passando pela ampliação das capacidades de ação, até
a prática do viver junto e dos mecanismos coletivos que permitem seu exercício.
A crise pandêmica levou a uma crise de um mundo que parecia
imutável, e que assegurava uma determinada ordem econômica, social, cultural e
psíquica que se apresentava, ou ainda se apresenta, como natural e
inquestionável. A sensação de incerteza e medo junto a nossa fragilidade humana
questiona tudo. De um dia para o outro fomos empurrados para um outro mundo,
com outros ritmos sendo impostos ao nosso corpo. Isso levou a uma fragmentação
e até estilhaçamento do que nos sustenta, do nosso corpo, não só biológico, mas
corpo emocional, erógeno, imaginário, simbólico, econômico, cultural, político.
O que Carpenter chama de corposubjetividade.**
Todos
estes diferentes corpos, segundo lógicas diferentes, constituem a nossa
subjetividade. Assim, toda produção de subjetividade é corporal no interior de
uma determinada organização histórico social. Isto é, do espaço onde tudo se
organiza para obtenção de lucro, consumo, e da realização privada e do
patriarcado. Este espaço de suporte intrassubjetivo, intersubjetivo,
transubjetivo, onde está a cultura e onde se assentam as trocas simbólicas,
econômicas, políticas, culturais e eróticas foi ou está profundamente abalado
com a crise econômica e pandêmica. O home office se insere neste
contexto.
Há resultados
preliminares de pesquisas sobre o home office sendo feitas nesse momento
que tem apontado aumento nos relatos de sintomas de ansiedade, depressão,
insônia e irritabilidade. Para citar algumas, estudo da FGV relata que 45,8%
das pessoas perceberam um aumento da carga de trabalho e encontraram mais
dificuldade para manter o foco. Outro, do LinkedIn, mostrou que 62% se dizem
mais ansiosos e estressados com o trabalho do que antes. 68% têm trabalhado
pelo menos uma hora a mais por dia, com alguns (21%) chegando a trabalhar até
4h/dia a mais, e com enormes dificuldades em se desligar das atividades
laborais. Nunca precisamos falar tanto e regulamentar o “direito à desconexão”
afim de se evitar o “tecnoestresse”. Esta preocupação, inclusive, está presente
no PL 3.512/2020 que tramita atualmente no Senado Federal e que objetiva detalhar
as obrigações do empregador na realização do teletrabalho. Segundo uma
publicação do G1 de 19 de 11 de 2020, “ Falta de regulamentação para home
office faz disparar ações na justiça” no período de março a setembro de 2020 o
número de processos judiciais envolvendo home-office subiu 263% em
comparação com o mesmo período de 2019, evidenciando a falta de regras mais
claras para o trabalho remoto. Segundo esta reportagem, em setembro de 2020 havia
7,9 milhões de pessoas trabalhando remotamente – 9,5 % da população ocupada no
período, de 82,9 milhões.
Temos
uma pesquisa intitulada “projeThos covid-19” (https://instagram.com/projethoscovid19)
que se propõe a dar visibilidade às
vivências e sentimentos relativos ao trabalho nesse contexto da pandemia do
novo corona vírus e o que mais aparece são relatos de medos e angústias que
esse momento têm gerado; é sobre a dificuldade das pessoas em conciliar as
rotinas com crianças/família e trabalho. O homeschooling e a busca por
atividades de entretenimento dos filhos, têm feito muitas mães adentrarem ao
ponto virtual de trabalho no período noturno ou mesmo de madrugada para
conseguirem dar conta de todas as demandas. Chama muito à atenção, o relato de
uma jornalista em que ela diz: “Me sinto cansada. Estou trabalhando 3 turnos,
sendo que sou contratada para atuar 40h. Muito difícil estabelecer limites
quando trabalhamos de forma online, com Whatsapp o tempo todo. Minha
casa não é mais um lugar de descanso”.
Agora
pensando especificamente no enquadre psicanalítico clássico.
Um
primeiro eixo de discussão no atendimento a distância é a questão do corpo. Ele
fica num outro lugar que podemos caracterizá-lo, a princípio, como um corpo
estranho. A persistência desta prática levanta questões sobre a angústia do
contato sempre mediado pela tela. O empobrecimento psíquico está inerente a
este processo, fazendo parte da precarização geral de nossas vidas. É
preocupante. É possível pensar um aumento de patologias relacionadas a
somatização ou ao transbordamento do corpo sem limites, sem contato.
Já
no eixo da transferência/contratransferência, sem contato corporal presencial
algumas questões sobressaem. Diversas sensações que a proximidade presencial
traz estão ausentes ou com outras características, como é o caso de ameaças que
envolvem o corpo, apoios com expressão corporal, cheiro, silêncios etc.
Nos
atendimentos grupais, não é possível perceber a troca de olhares; dramatizações
coletivas, somente uma cena ao lado de outra; interações corporais, no cenário
dramático do como se, numa mesma cena, não é possível.
Todas estas questões têm sido
discutidas aqui no Departamento e creio que elas nos impulsionam a pensar mais.
4) Algumas
pessoas acreditam que num futuro próximo determinadas atividades laborais
ocorrerão quase exclusivamente à distância. O que você pensa …
Um estudo,
coordenado pelo FMI, mediu o que chamaram de “índice de viabilidade do
teletrabalho” e aponta que, sim, o teletrabalho é uma tendência crescente daqui
para a frente. No entanto, há discrepâncias socioeconômicas enormes. Na maioria
das vezes, para os pobres, sem acesso a internet, ou com acesso precário, e sem
uma educação tecnológica adequada, aumentará a exclusão social e a vida
precária. Para as mulheres, com sobrecargas, isto se intensifica ainda mais.
Para as
profissões relacionadas ao “cuidado” como no campo da educação e saúde,
incluindo aqui a psicanálise, o trabalho vivo, no sentido marxista da palavra,
é central. Trabalho vivo, quero dizer com sentido para o trabalhador e em
consequência disto, transformador do objeto trabalhado e de si mesmo.
O neoliberalismo
destrói tudo que implica coletivização com criatividade, solidariedade, cooperação,
construção do “comum”. Este processo de precarização da vida em todos os seus
aspectos, comprime o trabalho vivo através do aumento do trabalho morto. Embora
isto tenha um limite, pois para o próprio capital não é possível acumular, sem
trabalho vivo. Os trabalhadores necessariamente são responsáveis por uma
importante criação que se dá entre o trabalho prescrito e o executado.
É possível ser
criativo na manufatura de limonadas com o limão, e localizadamente,
momentaneamente conseguir algumas superações muito circunscritas. A dimensão
pública e social da precarização é muito acentuada e progressiva, nos tempos
atuais.
Se o capital
continuar livremente gerenciando nossa vida teremos uma devastação sem igual do
trabalho, do meio ambiente, da cultura, enfim do mundo civilizado.
Só um novo
sistema social poderá evitar a barbárie. Temos que inventar um novo modo de
vida capaz de enfrentar este sistema antissocial do capitalismo, extremamente
destrutivo e incontrolável.
*Esta
entrevista foi respondida pela Equipe, embora o texto tenha sido elaborado por
mim, Pedro Mascarenhas. Nele existem trechos retirados de outras publicações
destes autores da equipe. Fazem parte dela: Bruno Chapadeiro, Cleide Monteiro,
Betty Boguchwal, Marcelo Ferretti, Maria Lúcia Calderoni, Marine Trinca Marta
Bagolin e Pedro Mascarenhas.
**
Carpintero, E. (2020). La crises de la pandemia llevo al estallido del espacio
posmoderno. El ano de la peste produzindo pensamiento crítico. E.
Carpintero. Buenos Aires, Topia Editorial.
Comentários
Postar um comentário