A Peste e o Mytho

Não se combate o Mito com a Razão. Pode a psicanálise, ao dar lugar ao trágico, nos restituir a responsabilidade por nossa boa democracia? Daniel Modós nos ajuda, com seu texto lúcido, a recolocar alguma ordem nessa história. Para ser lido de olhos abertos.


A PESTE E O MYTHO

Como, desde Freud, sabemos que tentando mandar o problema porta afora ele retorna pela janela, não me surpreendi tanto quando, tentando fugir da desalentadora realidade atual lendo sobre a história das cidades no magistral Carne e Pedra de Richard Sennet (2015 [1994]), me encontrei de cara com o tema da peste, e pior, com o problema da demagogia e do mito. Retratando a Atenas do século V a.C., o autor argumenta que o nascimento da democracia na época de Péricles assentou-se sobre um confronto fundamental, não de todo infamiliar para nós, entre duas formas de discurso: logos e mythos.  O primeiro se opõe ao segundo, visto que o discurso do logos deriva do verbo “legein” (reunir) em que “logos didonai” significa prestar contas frente a uma plateia reunida perante a qual o orador é responsável pelo que diz; exatamente o contrário do  tratamento que recebe o discurso do mythos, no qual o que é dito se refere a um saber externo ao orador, sobre o qual não se tem responsabilidade, patente em frases como “ouk emos ho mitos”, (não inventei isso, apenas ouvi falar por ai). O mythos vem de “outro lugar”, aquele que fala por ele não se responsabiliza, diferentemente do logos, que tem origem no orador em sua função política e social. Os atenienses estavam gravemente cientes dos perigos de uma retórica acalorada que contaminaria seus ouvintes com ideias perigosas, de modo que a responsabilidade pelo discurso do logos em sua função pública se tornou um grande pilar sobre a qual a primeira grande democracia pôde florescer. Apesar dessa inovação fundamental e de estarmos acostumados a louvar as virtudes do logos grego, é importante notar também que o mythos nunca deixou de ter uma função central na vida cívica ateniense organizando rituais que davam sentido à morte, à mudança de estações, à vida sexual. Segundo Sennet, a Atenas de Péricles se organizara como uma sociedade democrática pautada na tensão entre logos e mythos, a qual estruturou os conflitos sociais de um modo democrático nunca antes visto, de maneira surpreendemente estável... Isto é, até a chegada do desastre, da peste.

Em 430 a.C o Coléra chega à Atenas atingindo “primeiro e de maneira mais fatal a estrutura social da cidade, destruindo aqueles cultos que celebravam a santidade da morte” (Pág. 87). Se, como diz Han (Do desaparecimento dos rituais, 2020), as sociedades contemporâneas se caracterizam pela ausência de experiências rituais que forneçam sentido à existência, entendemos que, atualmente, a ausência do discurso do mythos e sua correspondente ritualização desestruturam a experiência social do desastre e da morte: sem o mito, é difícil dar sentido ao desastre da pandemia. Mas, não temam, na peste de 2020-202X nosso muito atual demagogo brasileiro saudado como “o Mito”, surge talvez como tentativa desesperada de alguns, em conformidade com seus ideais conservadores, de reencontrar a estabilidade de uma responsabilidade pelo desastre que recaia “em outro lugar”. Bolsonaro é mesmo o rei da desresponsabilização, do “senso comum” e do “ouvi falar”, que gera desinformação e espalha mentiras e mitos absurdos: sobre a falta de eficácia das vacinas, os efeitos deletérios da máscara, a cloroquina... Seu discurso tem a forma do mythos, uma aparência conservadora de eterna validade, somada a uma evidente desresponsabilização pelo que é dito e feito, muito embora o agravamento da pandemia seja evidentemente de sua autoria. É contra a centralidade do logos e da responsabilidade na vida pública que o bolsonarismo se posiciona. O mythos obscurantista de um “Mito”, de um “Messias” que vai a todos salvar, mas que na verdade nos condena à morte e ao sofrimento, se situa fora da lógica da contradição óbvia, contra a qual o discurso do logos se insurgiria. A luta de Bolsonaro e seus aliados é contra o logos, contra a vida cívica onde se presta contas e dentro da qual a responsabilidade não pode recair convenientemente em outros ou nas circunstâncias.

Seguindo Sennet devemos nos precaver, entretanto, em tentar combater o “Mito” com o logos: ele não joga pelas regras do discurso da lógica. O que Bolsonaro oferece é um discurso aquém da responsabilidade política do logos. Se pretendemos combatê-lo temos de pensar diferente. A democracia de Atenas se sustentava no conflito entre mythos e logos, e talvez em nenhum lugar isso fique tão claro quanto na invenção do gênero literário-teatral que combinava essas duas tendências opostas, a saber, a tragédia. Como diz a helenista Nicole Loreaux (Ética, Companhia das Letras, 2007) a tragédia é o que permite trazer para o campo da pólis o antipolítico – o tabu, a morte, a guerra, a doença, o desastre. É com o artifício dos mitos recontados e do ato dramático que se pode tratar dos temas difíceis da cidade (como a tragédia Os Persas permitiu, por exemplo tratar civicamente dos horrores bélicos em meio aos desastres da Guerra do Peloponeso). A tragédia é um jogo de tensões dentro do qual logos e mythos produzem vida cívica, integrando no seio da pólis aquilo que de outra forma seria impossível de integrar. Conhecendo os paralelos que Freud traçou entre psicanálise e tragédia não é difícil imaginar o papel fundamental de uma produção de resistência a Bolsonaro de fato trágica que nós psicanalistas poderíamos ensaiar. Transformar o desastre que estamos vivendo em tragédia, dar-lhe lugar entre logos e mythos, sem esquecer da importância do ato (drâma) na cena política. A tarefa da psicanálise talvez seja simbolizar socialmente o desastre com discurso responsável (logos), imagens narrativas (mythos), e com a ação (drâma), lembrando que o que estamos vivendo não é um simples trauma sem sentido frente ao qual só restaria um messias, mas sim, um acontecimento trágico dentro do qual há responsabilidade cívica, democrática, não só de nosso líder incompetente, mas de todos nós, cidadãos.

Daniel Modós é psicólogo formado pela PUC-SP e psicanalista. Foi aluno do curso de Psicopatologia Contemporânea do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae.

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