Dorme a cidade. Resta um coração.

O que resta quando não se tem nada a fazer? Inventa-se.

Camila Kfouri nos conta como foi sua experiência na criação da Clínica da Cidade - psicanálise pública, um trabalho necessário.

 

DORME A CIDADE. RESTA UM CORAÇÃO.

por Camila Kfouri

 

A hora era tensa.

Primeiro semestre de 2020.

Medo, angústia e tensão tomando conta.

Nós, psicanalistas aprendendo a atender online. Nós, alunos, aprendendo a aprender online. Trancados em casa. Gente adoecendo e morrendo por todos os lados.

Pandemia e distopia.

Um dia, um paciente que herdei da finada Clínica Pública de Psicanálise, da qual me encontrava órfã desde fevereiro, morador da Ocupação 9 de Julho, me pergunta para onde poderia encaminhar os moradores da Ocupação que se encontravam com graves questões de saúde mental. Acionei os grupos de psicanálise gratuitos em que confiava. Ninguém tinha como atender a esta demanda naquele momento.

Impôs-se a mim o pensamento de que, se não existia solução, teríamos que inventá-la.

Assim nasce a Clínica da Cidade - Psicanálise Pública.

Juntei psicanalistas em quem confiava e que acreditavam na democratização do acesso e transmissão da psicanálise.

Inicialmente um grupo grande, com muitos colegas do Sedes, ex-colegas da Clínica Pública de Psicanálise , uma do Cep e outro do Fórum do Campo Lacaniano. Escolhas muito baseadas no afeto. Pessoas entre as quais eu era o único elo e que se conheciam agora somente pelo zoom.

Chamei Moisés Rodrigues para ser nosso supervisor, por sua larga experiência com a violência de Estado e... novamente,  pelo afeto.

Passamos a nos encontrar semanalmente na tela do computador e a nos preparar como grupo, tijolo com tijolo num desenho lógico, antes de botar nosso bloco na rua.

Nesse processo o grupo foi se formando e nem todo o mundo ficou.

Vivemos as vicissitudes e intensidades de tomarmos corpo à distância e aceleradamente.

Os afetos apaixonados nem sempre dão conta de discordâncias efervescentes. Menos ainda quando colocados em um acelerador de partículas chamado pandemia.

Separações dolorosas e elaboradas a muito custo.

Em outubro nos lançamos à aventura de ir (virtualmente) para a rua.

Começamos com atendimentos individuais e continuos.

Como a complexidade da vida não estava em quarentena, a cidade que nos deu nome e contornos, nos impôs outras demandas.

A cidade não para, a cidade só cresce.

O de cima sobe e o debaixo desce.

Nascia uma clínica na, para e da cidade.

Que pudesse sentir sua pulsação.

Que investisse na psicanálise como algo que possa e mereça ser escutado e escutar.

Que possa ser acessível como uma política pública.

Um direito.

Acessível para quem sofre, para quem quer, e para quem deseja se tornar psicanalista.

Num país quase tomado pelo fascismo, pelo retrocesso, pela antiarte, o antiintelectualismo e a devastação da ciência, nos parecia essencial que pudéssemos resgatar a possibilidade da escuta.

Da reconstrução da importância da cidadania.

Do estar junto.

A clínica da cidade nasce com a ambição de se tornar um espaço de democratização da psicanálise.

Além de nos oferecermos para o povo da Ocupação, criamos um grupo online chamado “Luto à distância”.  Mais uma vez, uma ideia que se impôs a nós.  A imagem dos corpos carregados em caminhões na Itália, os números crescentes de mortos no Brasil e as nossas perdas pessoais, de gente que não poderia ser velada, com famílias e amigos que não poderiam se encontrar e abraçar e chorar juntas nos fizeram ver como urgência o cuidado com os que ficaram. O espaço para elaboração do inominável. Do que não tem palavras nem nunca terá. Vivenciamos juntos a morte da nossa professora Sandra Navarro, de tios queridos, de grandes amigos e até da analista de uma de nós.

Precisamos então criar um dispositivo para dar conta de tanta dor. Um grupo aberto para quem queira.

Só depois, só a posteriori, nos demos conta da ousadia do convite. Convite para que pessoas em carne viva pudessem dizer de seu desamparo virtualmente.

Percebemos que é preciso muita coragem para falar de tamanha dor. Para ser o porta voz do horror.

O grupo é hoje uma construção sólida que acontece quinzenalmente às quintas-feiras.

Logo a seguir veio a concepção do que chamamos de “Mutirão de Escuta”.  “Sessões únicas”. Ou “Consultas Terapêuticas”. Escuta aberta para quem nos procura, com a promessa de uma conversa sem julgamento e que pode se desdobrar em outras. Mas o compromisso é de um encontro.

Encontro este que acreditamos que pode ser uma intervenção importante para quem precisa  de ajuda para pensar formas de construção de saída para tanta angústia e isolamento. Ou queira apenas companhia em suas dores. Falar da vida que anda tão difícil. Contar com uma escuta atenta e dedicada. Ser acolhido e ter suas dores legitimadas.

Acreditamos que assim podemos contribuir com a construção de uma sociedade menos injusta e massacrante em um momento crucial de sua existência.

Não estamos inventando a roda. Muitos passaram por aqui antes de nós.

Mas as condições em que vivemos no Brasil de 2021, nos força sim a reinvenção de dispositivos comunitários. Nos empurra para a construção de vínculos inéditos e de uma psicanálise instituinte.


Camila Kfouri  psicóloga, psicanalista, ex-membra do laboratório de estudos da violência e vulnerabilidade social da Universidade Mackenzie, ex-membra da clínica pública de psicanálise e fundadora da clínica da cidade (nas horas vagas é DJ), aluna do quarto do ano de psicanálise no Departamento de Psicanálise do Sedes. 

A Clínica da Cidade hoje é composta por Camila Kfouri, Daniel Guimarães, Moisés Rodrigues, Myla Verzola, Naira Morgado e Vivian Whiteman.

O grupo “Luto à Distância” acontece quinzenalmente às quintas-feiras (próximas datas 4 e 18/3).

O “Mutirão de Escuta” é acessível através do email clinicadacidadepsicanalise@gmail.com, ou no facebook (https://www.facebook.com/clinicadacidadepublica


Comentários

  1. Parabéns por estas corajosas e difíceis iniciativas !

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  2. Camila: parabéns pela realização atual e meus votos para um trabalho longo e frutífero. Eva

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  3. Paulina 4 de março de 2021

    Querida Camila

    Porque gado a gente marca,
    tange,ferra,engorda e mata
    Mas com gente é diferente....

    ¨tanta vida pra viver
    tanta vida a se acabar¨

    Parabens pela invenção que tomou rumo no seu coração

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  4. Camila! Que lindo projeto!! Dar escuta aos que sofrem com seus silêncios! Parabéns!!

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  5. Parabéns Camila pela iniciativa, pela aposta, pelos convites feitos com afeto. E pela partilha da experiência

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