HUGO BLEICHMAR (1935-2020)
No
Blog um texto bem interessante de Ivan
Martins, que escreve sobre o psicanalista argentino Hugo Bleichmar, que
morreu em abril de 2020 em Madrid, conhecido entre nós por livros clássicos
sobre depressão, narcisismo e perversão, mas também por ser o irmão mais velho
de Silvia Bleichmar. Confiram
HUGO BLEICHMAR (1935-2020)
Por
Ivan Martins
De forma quase despercebida aos seus
leitores brasileiros, morreu em Madri, em 03 de abril do ano passado, o
psicanalista argentino Hugo Bleichmar, conhecido entre nós por livros clássicos
sobre depressão, narcisismo e perversão, publicados na década de 1980. Suas
concepções sobre o psiquismo, entretanto, avançaram muito desde então,
imprimindo à sua obra um caráter extremamente pessoal, distanciado em vários
aspectos da ortodoxia psicanalítica.
Bleichmar era o filho mais velho de um
imigrante judeu lituano que chegou sozinho ao porto de Buenos Aires com 13
anos, sem falar uma palavra de espanhol. A personalidade desse comerciante
taciturno e infatigável, com gosto pelo debate e dedicado à família, teria uma influência
decisiva sobre os três filhos, assim como o temperamento amoroso da mãe,
militante do Partido Comunista. A caçula dos irmãos, Silvia, nove anos mais
nova que Hugo, se tornaria internacionalmente famosa como psicanalista e
ensaísta política. Por ocasião da morte precoce dela, em 2007, ele publicou um
texto infinitamente afetuoso – intitulado A generosidade da mãe, o
inconformismo do pai1 - no qual falava, carinhosamente, do ciúme
que sentia da irmãzinha ruiva e intrépida que contava com a aprovação
incondicional do pai. Norberto Bleichmar, o irmão do meio, também é
psicanalista.
Formado e doutorado em medicina pela
Universidade de Buenos Aires, Hugo Bleichmar seguiu uma trajetória
singularmente freudiana: especializou-se em neurologia (estudou o sistema de
visão infravermelho das cascavéis), voltou-se à psiquiatria e, concluindo que
era “simplista”, chegou à psicanálise, via Freud. Numa entrevista de 2012,
gravada em vídeo2, diz que o grande atrativo do freudismo, para além
das questões clínicas e teóricas, estava na sua “filosofia moral”, baseada na
busca socrática da compreensão do homem por si mesmo. Ele acreditava que a sua
formação como psicanalista fora decisivamente influenciada pelo ambiente
acadêmico argentino, marcado nos anos 50 e 60 por abertura de ideias e debate.
Posteriormente, diria que a geografia é uma espécie de destino quando se trata
de analistas: estes carregariam de forma indelével as marcas da cultura
psicanalítica em que foram formados, fosse ela francesa, inglesa ou argentina.
Bleichmar, a mulher e os três filhos deixaram a Argentina, dias antes do golpe
militar de 1976, logo depois que o grupo de formação psicanalítica que ele
coordenava, alternativo à Associação Psicanalítica Argentina, atraiu a atenção
da polícia pela politização de seus debates.
Emilce Dio Bleichmar, sua mulher desde a
militância política universitária, também médica e psicanalista, conta que a
família se instalou em Caracas e que ali, numa casa cercada pela natureza,
Bleichmar escreveu os três livros que o tornaram conhecido: A depressão,
O Narcisismo e Introdução ao estudo das perversões. “Este
último”, diz ela, “vendia como churros, porque explicava de forma simples e
compreensível o que dizia Lacan em seus Escritos”3.
Em 1984, inquieto com os rumos
ditatoriais da política sul-americana e com seu impacto sobre o futuro dos
filhos, o casal decidiu se mudar para a Europa. Em Madrid eles montaram sua
clínica, criaram uma editora e abriram a Escola de Ensino Livre de Psicanálise (conhecida
pela sigla ELIPSIS), que mais tarde seria integrada à Universidade Pontifícia
Comillas na qualidade de curso de pós-graduação. Na mesma época, Bleichmar
liderou a criação do Fórum de Psicoterapia Psicoanalítica, que tem por objetivo
ampliar o diálogo da psicanálise com disciplinas como a psicologia e a
neurociência. Em 1999, entusiasmado com as possibilidades da tecnologia, lançou
a revista Apertura Psicoanalíticas4, publicada na internet desde
então, com acesso gratuito, e se encontra no número 65.
O livro que definiria a visão própria de
Bleichmar sobre o psiquismo foi publicado em 1997. Trata-se de Avances em
psicoterapia psicoanalítica. Hacia una técnica de abordajes específicos,
ainda sem tradução para o português. Nele toma forma a abordagem
modular-transformacional, que, amparada na teoria linguística de Chomsky, tenta
explicar a complexidade do psiquismo humano pela interação de diferentes
fatores motivacionais. O intento de Bleichmar, aclarado num artigo publicado no
número inaugural da revista Aperturas5, é ir além de um modelo de
inconsciente que considera simplista, baseado apenas na repressão pulsional.
“Por nossa parte”, escreve no artigo, “tomando a modularidade como eixo,
expusemos em Avances em psicoterapia psicoanalítica um modelo do
psiquismo baseado na articulação de componentes e de sistemas motivacionais,
módulos que podem ser descritos pela qualidade dos desejos que ativam e pelas
estruturas que estão em jogo”.
Assim, haveria, entre outros, um sistema
narcisista, um sistema sexual, um sistema de auto conservação e um grande
sistema de apego que, interagindo reciprocamente, determinariam a personalidade
inconsciente do sujeito, em estreita conexão com os objetos primários. Embora
repudiado pela psicanálise, o conceito de apego foi absorvido pela teoria de
Bleichmar. Com base nele, escreveu Del apego al deseo de intimidad: las
angustias del desencontro6, o artigo pelo qual tinha mais
carinho. O sexual-pulsional, tão caro a Freud, torna-se no esquema modular
apenas um outro fator motivacional. Bleichmar entendia que Freud oscilara entre
visões de um inconsciente modular (complexo) e outro homogêneo (simples) e que
a teoria psicanalítica pós-freudiana deveria abraçar decisivamente a
complexidade, com consequências sobre a teoria e a clínica.
Essa nova visão, uma espécie de segunda
tópica bleichmariana, parece radical, mas aprofunda concepções já presentes em
seu livro sobre narcisismo, no qual o amor de si e suas decorrências funcionam
como o grande filtro psíquico entre o Eu e a realidade, preponderando sobre os
impulsos sexuais voltados ao exterior, que Bleichmar parece reduzir a uma
demanda física das zonas erógenas.
Essa tentativa de avanço em relação ao
freudismo é a marca de um autor profundamente original, influenciado primordialmente
pela observação clínica, que detestava dogmatismos e dizia ser importante estar
simultaneamente “dentro e fora” das instituições e escolas psicanalíticas,
extraindo de cada uma delas – e mesmo de áreas adjacentes do conhecimento – os
elementos necessários para a compreensão e transformação terapêutica do mundo
psíquico.
Bleichmar era membro da Associação
Psicanalítica Internacional e morreu em sua casa, aos 85 anos, de causas não
divulgadas.
Referências:
1. http://silviableichmar.com/legadohomenaje/Hugo_Bleichmar.html
2. https://www.youtube.com/watch?v=75uoZSlprzU&feature=emb_logo
3. http://aperturas.org/imagenes/archivos/ap2020%7Dn000a1.pdf
5. http://www.aperturas.org/articulo.php?articulo=1078
6. http://www.aperturas.org/articulo.php?articulo=0000074
Ivan Martins é psicanalista, aluno do curso de Psicopatologias Contemporâneas do Sedes e autor dos livros Alguém especial e Um amor depois do outro.
Ivan: obrigada pelo seu texto. Gostei muito. Eva
ResponderExcluirObrigado pelo comentário gentil, Eva.
ResponderExcluirIvan, obrigada por nos mostrar esse autor,para mim desconhecido, mas que agora pretendo ler.
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