Ao Chico, com açúcar e com afeto

Maria Silvia Borghese, professora do Curso de Psicanálise, endereça uma carta a Chico Buarque de Holanda no Blog do Departamento de Psicanálise. Com açúcar e com afeto, sempre.

AO CHICO, COM AÇÚCAR E COM AFETO.

Oi Chico, tudo bem? Pensei muito – pensei e pensei – se deveria lhe escrever esta carta. Eu não conseguia me decidir, até me dar conta do que me movia, incomodava, provocava. O desejo de escrever vinha na verdade de emoções, sentimentos e angústias.

Faltavam alguns passos imprescindíveis para que eu pudesse transformar o mal-estar, até corporal, em palavras. Por isso, começo dizendo logo de cara o que sinto: Chico, não deixe de cantar Com açúcar, com afeto. Estava assistindo ao documentário sobre Nara Leão, encantada pela mulher maravilhosa que ela foi. O caminho dela se enlaçava às minhas próprias lembranças, tristes e felizes ao mesmo tempo, nostálgicas e ansiosas pelo futuro. Nara nos prestou um serviço imenso ao abandonar a proteção de seu apartamento em Copacabana, tão impregnado pelos limites da vida bossanovista. Contradições, paradoxos, humanidades.

A certa altura, aparece você, lindo e gentil como sempre. Aliás, claro que você tinha que estar lá, você teve importância na vida dela, foi parceiro, companheiro, camarada, amigo. De repente, um anúncio: ‘Nara, se estivesse viva não mais cantaria Com açúcar, com afeto’. Você também não pretendia mais cantá-la.

Confesso, fiquei chocada. Que declaração foi essa, Chico? O mal-estar se instalou imediatamente, apenas se amenizando na linda cena do passarinho que voava em volta da filha e do neto de Nara, no momento em que o neto emocionado tentava falar do que a avó, que ele sequer conheceu, representava para ele.

Nara era livre como um passarinho, mas era uma mulher que também sofreu. Sofreu por muitos motivos, inclusive por ser mulher, por amores equivocados, pelas escolhas muito próprias que ela sustentava tão corajosamente.

Não, Chico. Nara não se negaria a cantar essa canção tão linda – música e letra. Ela tinha muita clareza e lucidez. Perdoe-me por corrigi-lo, talvez até repreendê-lo, mas acho que você se equivocou justamente por falta de clareza. Ficou muito evidente o quanto você preza o feminismo e repudia o machismo estrutural de nossa sociedade. Nada surpreendente pra mim, uma mulher na casa dos 60 anos, que sempre soube que você é o compositor brasileiro que mais nos leu profundamente. Enxergava as nossas dores como ninguém. Suas letras são femininas, você sempre assumiu nosso lugar de fala (expressão tão polemica) como ninguém, em um momento em que estávamos muito silenciadas, embora já houvesse luta, Simone de Beauvoir, sufragistas e soutiens queimados por aí.

Mas estávamos no Brasil, um país que ainda hoje teima em ser o reinado do patriarcado, heteronormativo, onde manda ainda o homem branco. Então, a cada canção com que nos presenteava, trazendo sua sensibilidade, eu sentia que alguém estava falando profundamente do meu lugar, sobre minhas dores e minhas contradições. Como nos ensinou Simone de Beauvoir, muitas mulheres escolhem (sem ter tantas escolhas assim) se associar e encontrar um lugar de aconchego junto ao homem que a domina. Somos forjadas, tornadas mulheres em uma cultura de muitas aberrações, violenta contra as mulheres. Até hoje, muitas não se dão conta disso, mas você, Chico, você sempre compreendeu isso, sempre quis falar sobre isso, expor as nossas feridas. Repare que eu não escrevo nada de novo acima, o seu lugar na compreensão da alma feminina é até clichê, todo mundo sabe disso. Mas o que desejo lhe dizer, para além das coisas facilmente constatáveis, é que você se equivoca ao retirar ou ‘cancelar’ suas canções. Você não inventou o machismo, também não criou as dores de uma mulher que mesmo se sentindo abandonada e desamparada pelo homem amado, faz seu doce predileto. Sua canção na voz da Nara – que obra de arte! – colocava em cena de maneira aguda essas contradições e armadilhas amorosas que ainda hoje submetem as mulheres: ‘a mulher nasceu pra encontrar o amado ideal, a mulher tem instinto materno etc.’ Construções de gênero tão incrustradas, que ainda sustentam as sociedades do capitalismo tardio.

Chico, não ‘cancele’ suas músicas! Vai ‘cancelar’ também Atrás da porta? Ao longo da vida, chorei e me identifiquei tanto com Elis, que terminava com só pra provar que ainda sou tua. E aquele primor que é a Ópera do Malandro, com canções como O meu amor e Geni e o Zepelin? Você não inventou a maldade, não é? ‘Acho que a gente nem tinha nascido’. Mas, sim, você se inventou como um homem branco que, apesar de ter nascido com privilégios, que se tornou famoso, abriu espaço para as nossas vozes tão sofridas em suas canções.

Estamos vivendo momentos estranhos. De um lado, avanços notórios acontecendo, uma parte significativa da moçada, que é muito antenada, denuncia desigualdade, injustiça, intolerância, racismo, homofobia. Temos mais meios para protestar, esse é o lado positivo que vejo nas redes sociais. Mas, por outro lado, alguém precisa lembrar que as lutas não começaram em 2022, essas lutas são seculares. Em cada época, uma população luta com as armas de que dispõe. A memória e a história precisam ser preservadas para que as injustiças e a violência de maneira geral não se repitam, para evitar que continuem acontecendo.

Contudo, meu querido Chico, e já vou terminando, preciso ressaltar o que agora já consigo pensar como a fonte de meu mal-estar. É absolutamente equivocado ‘cancelar’, apagar as produções do passado: a arte, a cultura, as manifestações populares. Sou a favor de que consigamos, isso sim, ressignificar, colocar em seu devido lugar. O apagamento não faz desaparecer a história. Aquilo que nos fez ou faz mal precisa ocupar um lugar, não da exaltação, mas o da exata dimensão do que representaram. Como Auschwitz, por exemplo.

Mas, suas canções? Não, Chico, elas estão no extremo oposto. Foram nossas armas. Foram fundamentais para várias gerações, ainda o são para as gerações atuais. No caso das mulheres, ajudaram a nomear sofrimentos e dores antigas e cristalizadas, a nos fazer perceber que a palavra poderia nos levar longe, que o nosso jugo era coletivo, que tinha mais gente lutando. Volte a escutar Com açúcar, com afeto, na interpretação de Nara Leão. A voz é suave, mas a potência da mensagem é de um petardo. Algumas mulheres jovens de hoje não se reconhecem mais naqueles versos? Será? Penso que, infelizmente, muitas ainda se reconhecem. Para estas últimas, sua letra vai possibilitar revelação, reflexão. Se provocar revolta ou crítica, ainda assim valerá a denúncia.

Com açúcar e com afeto, despeço-me.

Maria Silvia Borghese é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae, doutora em Psicologia Social pela PUC SP, pós- doutorado em psicologia social pela USP, autora dos livros Depressão & doença nervosa moderna (Via Lettera, 2004) e O tempo e os medos (Ed. Blucher, 2017).

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