Entre sedução e inspiração: como situar o Eu? Sobre o II Colóquio Jean Laplanche Brasil

No final do ano passado não conseguimos publicar um texto escrito por Luiz Carlos Tarelho e pela nossa colega de Departamento Ivy Semiguem Freitas de Souza de Carvalho sobre o II Colóquio Jean Laplanche Brasil: “Entre sedução e inspiração: como situar o Eu?” realizado em outubro de 2021. Ainda em tempo, vale a leitura do relato desse encontro que destaca as principais questões discutidas entre estudiosos de Jean Laplanche no Brasil.  

 

ENTRE SEDUÇÃO E INSPIRAÇÃO: COMO SITUAR O EU?

SOBRE O II COLÓQUIO JEAN LAPLANCHE BRASIL

Luiz Carlos Tarelho

Ivy Semiguem Freitas de Souza de Carvalho

 

Foi realizado nos dias 15 e 16 de outubro, em parceria com o LIPSIC, o II Colóquio Jean Laplanche Brasil, tendo como título “Entre sedução e inspiração: como situar o Eu?” O evento é uma iniciativa de estudiosos do pensamento de Jean Laplanche, que estão empenhados em dar continuidade à sua obra e a “fazê-la trabalhar”, como ele gostava de dizer. O tema do Eu foi escolhido em ressonância tanto com a discussão ocorrida no I Colóquio de Porto Alegre, em julho de 2019[1], quanto com a que teve lugar no Colóquio Interacional Jean Laplanche, em 2018 na França, tendo o narcisismo como foco[2]. Dessas discussões surgiram novas inquietações, principalmente no tocante à relação entre o que Laplanche chama de “tradução” em seu modelo e a constituição do Eu como instância, e também no que diz respeito às relações entre as identificações, o narcisismo e o Eu.

Entre os pontos mais discutidos nesse evento, destacou-se o do papel da atividade tradutiva da criança na constituição do Eu. Sendo um ponto de divergência entre os estudiosos, essa questão reapareceu em vários momentos da discussão, assumindo uma certa polarização. De um lado, os que, na esteira de Silvia Bleichmar, defendem que a criança, no início, antes do aparecimento do Eu-instância, não dispõe ainda de recursos psíquicos suficientes para manejar códigos e, desse modo, desenvolver uma atividade tradutiva. Logo, o surgimento do Eu-instância ficaria dependente não apenas do aporte de códigos e materiais simbólicos por parte do adulto cuidador, mas também da própria atividade tradutiva que esse adulto realiza para a criança. De outro, os que, como o próprio Laplanche, defendem que a capacidade de manejar códigos aparece antes da constituição do Eu-instância, pois está ligada a montagens instintivas, no plano da autoconservação e do apego, que se manifestam muito cedo e que servem de base a uma atividade tradutiva, cujo papel na constituição do Eu-instância não pode ser ignorado.

Outro ponto, menos polêmico, mas que também ocupou o centro das discussões foi o da noção de inspiração proposta por Laplanche para tentar dar conta de uma dimensão da sublimação, que estaria na base dos processos criativos do Eu e do que Freud chama de pulsão de saber. Essa dimensão, que Laplanche chama de inspiração, corresponde ao polo mais livre da sublimação, em oposição a outro mais sintomático, que deriva do recalcado inconsciente, enquanto que o primeiro deriva diretamente do sexual enigmático, que escapou do recalcamento. Na medida em que essa dimensão é vista como o grande motor do processo criativo, o que se perguntou nesse evento é o quanto ela tem um papel importante na constituição do próprio Eu. Vários trabalhos se lançaram nessa direção, seja buscando uma correlação desse processo com a atividade tradutiva (Luiz C. Tarelho), seja buscando uma pista pra se pensar a questão das novas configurações de gênero (Ivy Semiguem).

Outros trabalhos fizeram um importante inventário da evolução do conceito de Eu na obra de Laplanche. Maria Teresa Melo Carvalho retomou as discussões do autor sobre as derivações metonímica e metafórica, destacando o quanto ele defendeu a ideia de que não se pode separar essas duas derivações, mesmo que ele próprio tenha dado mais ênfase à derivação metafórica, envolvendo o plano sexual e as identificações. Fernando Andrade também realizou um importante resgate do percurso de Laplanche a respeito do conceito de Eu ao mesmo tempo em que enfatizou um elemento central nesse processo, pouco trabalhado pelo autor, que é o fato de que, para que o Eu se constitua como instância, isto é, como objeto libidinal, ele precisa ter sua existência pressuposta pelos adultos que cuidam da criança, na forma como estes a tratam.

Marta Rezende Cardoso estabeleceu um frutífero diálogo entre o pensamento de Laplanche e o de Freud para mostrar como a constituição do Eu e seu desenvolvimento se insere numa relação especular complicada, marcada pela alteridade e por um jogo de forças envolvendo uma relação de domínio e de poder, colocando o Eu, de modo inevitável, numa posição de fronteira entre o familiar e o estranho. Numa linha semelhante, tomando o gênero como pano de fundo, Felippe Lattanzio salientou o caráter compulsório da identidade sexuada na medida em que ela comporta uma face de repetição que deriva da alteridade originária. Fábio Belo fez uma incursão pelo conceito de estética da existência para pensar como os códigos e esquemas narrativos, funcionando como paraexcitações, entram no processo de constituição do Eu e das identificações que lhe dão consistência. Kenia Ballvé Behr, por sua vez, fez uma incursão no pensamento de Laplanche sobre a sublimação e a inspiração para pensar tanto a constituição do Eu quanto a situação analítica.

Numa outra vertente, de interlocuções, Marina F. R. Ribeiro e Paulo de Carvalho Ribeiro buscaram identificar e discutir algumas tangências entre o pensamento de Laplanche e o de Bion, a partir do conceito de “intuição” de Bion e do conceito de “inspiração” de Laplanche. Nessa mesma perspectiva, Elisa de Ulhôa Cintra e Maria Teresa Melo Carvalho tentaram encontrar pontos de convergência e de divergência entre os pensamentos de Laplanche e de Roussillon no tocante ao papel das identificações primárias na constituição do Eu.

https://www.youtube.com/watch?v=g0dhUSItHY0

Ivy Semiguem F. Souza de Carvalho é psicóloga e psicanalista, membro aspirante do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, pesquisadora associada ao Lipsic e doutoranda em psicologia clínica pela USP

Luiz Carlos Tarelho é psicólogo e psicanalista, pesquisador ligado à Fondation Jean Laplanche, autor de vários trabalhos e coautor do livro “Por que Laplanche?” editado pela Zagodoni.



[1] Esse evento deu lugar a uma publicação no formato de livro intitulado “Três destinos da mensagem enigmática” editado pela Zagodoni em 2020.

[2] Publicado em francês no volume “Narcissisme et «sexual» dans l’œuvre de Jean Laplanche”, PUF, Paris, 2020. 

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