Analistas podem defender posições Políticas publicamente?

Analistas podem defender posições políticas publicamente? Como posicionar-se frente a isso? Se ele se posiciona publicamente, submete seus analisandos a uma forma de invasão subjetiva, ou ao confronto de pontos de vista? A partir deste questionamento, Ivan Martins constrói um texto instigante e importante. Vale  conferir: 

 

ANALISTAS PODEM DEFENDER POSIÇÕES POLÍTICAS PUBLICAMENTE?

Toda vez que escrevo e publico alguma coisa de natureza política, (e tenho feito isso com frequência), sou obrigado a evadir uma questão que agora me proponho a enfrentar: como os pacientes se sentirão ao ter contato explícito com este aspecto das minhas ideias e da minha personalidade?

Ao escrever sobre política eu não estaria, de alguma forma, rompendo um pacto de abstinência e invisibilidade, me oferecendo a eles como exemplo a ser seguido e admirado – ou, pelo contrário, como objeto de medo e raiva paranoicos, se eles pensarem de forma diferente de mim?

Será que, como psicanalista, eu não deveria renunciar à satisfação narcísica de um gesto socialmente abrangente - e à pretensão de influenciar diretamente a luta política -, me restringindo a atuar discretamente nos espaços e instituições frequentados por meus colegas?

Obviamente a pergunta não diz respeito só a mim.

A mídia e as redes sociais estão repletas de analistas que se posicionam por meios de artigos, postagens, lives e entrevistas. Todos os dias. A nossa presença no debate político é um fato. Mas isso significa que não há mais necessidade de discutir eticamente o assunto? Significa que todos nós, psicanalistas, recebemos passe livre para expor em primeira pessoa as opiniões que julgarmos pertinentes, como faria qualquer cidadão de posse de um celular e de uma conta de Facebook?

A resposta a essa pergunta me parece qualquer coisa, menos óbvia.

Eu ficaria muito incomodado se lesse ou ouvisse o meu analista defendendo posições políticas opostas às minhas, e imagino que meus pacientes tendem a reagir da mesma forma. A política, afinal, deixou de ser objeto de indiferença entre nós. Depois de décadas reclamando que os brasileiros não eram suficientemente politizados, agora temos de lidar com uma multidão raivosamente posicionada. É gente frustrada e intolerante como nós mesmos, que pode estar no polo oposto da radicalização.

Nesse ambiente carregado, se o psicanalista expõe publicamente suas posições políticas, a possibilidade de que isso afete a clínica não é pequena. Suas opiniões terão efeito na transferência. O paciente que comunga das mesmas ideias pode “adorar” o que leu – e me pergunto se essa identificação idealizada é saudável – assim como o paciente do outro lado da divisória ideológica poderá sentir-se atacado. Afinal, é cada vez mais difícil escrever sobre bolsonarismo, negacionismo e vacinas – por exemplo – sem que raiva e desprezo transpareçam.

Como posicionar-se frente a isso?

A divisão ideológica da sociedade brasileira é um fato momentaneamente incontornável. A polarização a que fomos arrastados pelo comportamento do governo frente à pandemia (ao meio-ambiente, à venda de armas, à violência policial, às urnas eletrônicas, à difusão de fake news...) não é superficial nem transitória.

Existe a barbárie, existe a urgência de posicionar-se frente à barbárie e existe o desconforto que decorre desse confronto. As relações na psicanálise, como outras relações no interior da sociedade brasileira, vão sendo tocadas pelo fascismo e pelas reações a ele.

O que fazer?

Não acho que exista uma resposta satisfatória a essa pergunta, algo que concilie magicamente a neutralidade psicanalítica com a necessidade de reação política. As exigências éticas da situação brasileira (e talvez mundial...) parecem se opor ao princípio da abstinência. No mundo ideal, o analista talvez pudesse (ou devesse) renunciar às polêmicas públicas, evitando influenciar seus pacientes ou criar com eles conflitos antiterapêuticos. Mas a verdade é que estamos longe do mundo ideal.

Lidamos no Brasil com autoridades que premeditadamente colocam em risco a vida de milhões de pessoas (inclusive crianças) em nome de uma ideologia indefensável. Já houve mais de 630 mil mortes por Covid e os perversos - ou melhor, os “quadros técnicos do bolsonarismo”, como se auto definiu o ministro Marcelo Queiroga, essa figura sombria -  continuam a sabotar ativamente as medidas de saúde pública, levando suas crenças anticientíficas aos limites da loucura e do genocídio. A sociedade brasileira está existencialmente ameaçada por uma onda de violência, mentiras e irracionalidade nunca vista, e a psicanálise não menos do que ela.

Alguém imagina que o fascismo religioso do bolsonarismo vai deixar o freudismo laico e sexualmente libertário em paz, se vier a tornar-se hegemônico na sociedade brasileira? Alguém pensa que a clínica psicanalítica e a vida dos pacientes seguirão como antes, intocadas, se Bolsonaro perpetuar-se no poder por meio de um golpe de Estado? Não há vida normal sob o fascismo para quem não adere à lógica assassina que o constitui. Na dúvida, pergunte aos analistas argentinos que viveram sob a ditadura.

Parece, então, que estamos encurralados entre a necessidade (ou o direito) de confrontar politicamente a barbárie – como cidadãos e como psicanalistas – e o desejo, justificado, de poupar nossos pacientes da intimidade não requisitada com nossas ideias sobre o mundo. Alguém terá de perder como resultado desse impasse.

O analista que se posiciona publicamente submete seus analisandos a uma forma de invasão subjetiva, assim como ao confronto (certamente incômodo e emocionalmente desigual) de pontos de vista. Mas é razoável supor que neuróticos tenham recursos para sobreviver tanto ao golpe narcísico (representado pela exuberância social do analista) quanto ao desencanto identificatório com esse objeto que, de repente, ganha vida própria, fora do consultório e das projeções.

Com pacientes limite a situação pode ser mais complicada, dando margens a atuações invejosas ou paranoicas. O vínculo com o analista pode ser profundamente abalado ou mesmo rompido. Esse tipo de paciente tende a reagir com muita raiva quando suas fantasias em relação ao analista são contrariadas. A alteridade para eles é problemática em várias dimensões, e as diferenças políticas ou ideológicas tendem a ser dramatizadas.

Mesmo assim, talvez seja necessário correr o risco. A história da psicanálise nos sugere que evitar embates ideológicos com o fascismo significa, no mais das vezes, favorecer um status quo aterrorizante.

Ernest Jones, biógrafo de Freud e presidente da IPA no período da II Guerra, tentou proteger a psicanálise alemã colaborando com os nazistas encarregados de “arianizá-la”, como nos conta Elisabeth Roudinesco. (1) Sua proposta de “neutralidade” diante da barbárie, do banditismo e do antissemitismo não impediu a destruição do freudismo na Alemanha e na Áustria – e nem a disseminação de um certo nazi-freudismo pelo mundo.

Um dos protagonistas e beneficiários diretos das “arianização” da psicanálise alemã – o nazista de nome Werner Kemper – chegou ao Brasil no pós-guerra como enviado da IPA. Aqui, Kemper analisou Leão Cabernite, que, por sua vez, veio a analisar Amilcar Lobo, o infame torturador que, durante a ditadura, fazia formação na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, ligada à IPA. Denunciado por uma colega corajosa, Lobo foi ardorosamente protegido por Cabernite e pela SPRJ, enquanto a colega era perseguida. (2)

Percebe-se que os atos e omissões políticos têm consequências nefastas que se estendem no tempo.

Mesmo agora, diante da perversão a céu aberto do bolsonarismo, ainda há no meio psicanalítico quem defenda os atos do governo e a impropriedade de qualquer posicionamento institucional contra a extrema direita - sempre em nome da preservação da psicanálise.

Eu obviamente discordo. Minha impressão é que a psicanálise não será preservada pela omissão de suas instituições e dos seus praticantes frente à irracionalidade destrutiva que nos confronta. Pelo contrário. Acredito que é o momento de nos posicionarmos com clareza, como sujeitos e como parte de um grupo profissional, em defesa da ciência, da vida, da democracia e da inclusão de todos os brasileiros no mundo dos direitos.

Para isso talvez seja necessário correr riscos na relação com os pacientes. Mas os riscos, todos sabemos, assombram os vínculos permanentemente, em todas as sessões de psicanálise. O risco de falar ou silenciar, de interpretar ou deixar passar, de acolher ou deixar que a falta prevaleça. Não existe uma posição segura neste trabalho difícil, assim como não existe na vida.

Ivan Martins é psicanalista, jornalista, ex-aluno do curso de Psicopatologia Contemporâneas do Departamento de Psicanálise do Sedes e autor dos livros “Alguém especial” e “Um amor depois do outro”

(1)  Roudinesco, Elisabeth. “Sigmund Freud, na sua época e no seu tempo”, Editora Zahar, Páginas. 410-415

(2)  http://coldepsicoanalistas.com.ar/ernest-jones-controversias-en-torno-a-un-gran-estratega-daniel-slucki/


Comentários

  1. Vale a pena diferenciar o conceito de abstinência como regra fundamental da Psicanálise do conceito de se abster como cidadão da historia .Abstinência em Psicanalise esta ligado ao conceito de não desejar pelo outro,não impor seu desejo,escutar e trabalhar com o desejo de quem fala.Nada a ver com se mostrar ou manifestar fora da sessão. Meltzer dizia que sempre tinha que se atender o paciente com a mesmo aspecto,Terno de giz cinza,para ser uma tela neutra no qual o paciente pudesse projetar sem ser influenciado.Muita água correu debaixo da ponte,hoje isto soa um absurdo.Escrevi um texto nomeado Abstinência ,publicado na revista Psicanalise e Barroco da UERJ,no qual analiso esta questão.É necessário tb diferenciar entre abstinência e neutralidade.Se o paciente conhece aspectos de seu analista terá que lidar com eles. A questão não é facil,é complexa,mas tem sido bastante trabalhado na literatura psicanalitica.

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  2. Caro comentarista, obrigado. De fato, é importante lembrar que os conceitos de abstinência (o limite ético que interdita o gozo do analista) e neutralidade (que vem a ser a necessidade de respeitar as escolhas do outro) se aplicam, originalmente, à conduta do analista durante as sessões. O que eu venho dizer, justamente, é que a sessão pode ser invadida de fora e que a regras fundamentais podem ser rompidas a partir de atitudes sociais do analista, como seu posicionamento político. Ele rompe de fato a neutralidade (sugerindo uma escolha política ao paciente) e mesmo a abstinência, uma vez que torna público o desejo do analista de influenciar o pensamento do outro. Suponho que tenha influências na transferência. Não se trata de uma questão nova, naturalmente, mas de um dilema agudizado pelo momento que vivemos, em que a política invadiu a vida e o setting analítico. Novamente, obrigado pelo comentário.

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