Davi e Golias

Nossa colega, Gisele Senne de Moraes, faz uma reflexão sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia. Dentre  uma série de considerações, ela nos lembra do conceito de autopreservação proposto por Silvia Bleichmar para compreender o que pode estar em jogo no conflito.

                                                                                            

DAVI E GOLIAS

Dias antes da invasão russa sobre o território ucraniano, em meio a rumores de aumento de tensão, aceitei uma sugestão da Netflix e assisti ao documentário Winter on Fire: Ukraine's Fight for Freedom, achando que me ajudaria a entender melhor o conflito em vias de eclosão.

O documentário impressiona - pelo menos me impressionou - ao exibir as filmagens das manifestações populares ocorridas entre o final de 2013 e início de 2014 na Ucrânia. Diferentemente das manifestações populares que aconteceram por aqui em meados de 2013, com reivindicações mais dispersas, havia um uníssono pró-aproximação com a União Europeia na Ucrânia. Demanda popular combatida com violenta repressão e que teve como sequência um verdadeiro levante civil, que ficou conhecido como Euromaidan. A inconformidade me tocou, fui mobilizada pela injustiça diante da vigorosa repressão governamental frente à aspiração pelo arcabouço político, social, cultural (e militar) do mundo ocidental, tão idilicamente vivido na Europa social-democrata, onde as pessoas podem se manifestar e a liberdade é um valor inegociável. Liberdade, igualdade e fraternidade são valores que nos são caros, como cultura ocidental(izada) e como psicanalistas. Não tenho receio em afirmar que são valores caros para a comunidade de psicanalistas do Departamento de Psicanálise do Sedes. São caros para mim também como mulher, no mínimo porque historicamente temos sido as primeiras a serem dominadas na ausência de tais valores. Pronto, o campo estava arado.

Com a deflagração da guerra, sobre o campo preparado, as sementes floresceram. Fui arrebatada novamente pela sensação de injustiça, talvez até indignação, com a violência inerente à invasão e com a ameaça sobre os valores que embasam ideologicamente nossa sociedade. Quis reagir, torci, pensei que eles tinham que lutar, que eles tinham que resistir tal como na Euromaidan. Pensei: “essas pessoas estão lutando por sua própria existência como país, não vão desistir tão facilmente, lutam pelos mesmos ideais que possuo. O mundo tem que fazer algo!”.

Escrevo este texto passadas 3 semanas de invasão e, inacreditavelmente, os ucranianos continuam resistindo, apesar da destruição em seu país, que acompanhamos nas telas atuais. Uma breve divagação, se me permitem. O nome Putin se assemelha foneticamente ao diminutivo de puto, o que, em português de Portugal, seria menininho. Um menininho brincando de guerra, de tanques atropelando carros e aviões bombardeando grandes instalações, civis ou militares. Meu pensamento me foge, uma pergunta assopra em meus ouvidos: até quando o mundo será dominado por crianças sádicas ou, no mínimo, indiferentes ao sofrimento alheio?

Como muitos colegas e amigos do Departamento sabem, aprecio as ideias de Silvia Bleichmar, elas costumam me ajudar e aqui me tiram de minhas divagações. A abordagem da autora sobre constituição do sujeito ético poderia ser um caminho a seguir neste breve texto. Mas aponto para outra direção, mais pontual, a partir da diferenciação que ela propôs entre as noções de autoconservação e autopreservação. A autoconservação diria respeito à continuidade da vida biológica, enquanto a autopreservação seria relacionada à preservação de aspectos identitários do Eu. Mudanças em condições socioeconômicas ou rupturas nos discursos culturais que venham a ferir aspectos identitários poderiam ser des-subjetivantes, produzindo fraturas no Eu.

Nos primeiros dias da invasão, li ou escutei - já não me lembro - uma análise que sugeria que a força da resistência ucraniana viria da ameaça à existência do país como nação independente, o que estaria em jogo, assim, seria a própria identidade da população ucraniana, como mencionei acima. Segundo tal análise, povos que resistem a invasões manteriam sua identidade cultural viva. Tais ideias me remeteram à noção de autopreservação de Bleichmar, na medida que a invasão poderia provocar uma ruptura no tecido social que dá sustentação aos sujeitos. Ao se buscar “quebrar as pernas” de um país, arrisca-se “quebrar as pernas” das pessoas que o constituem. Dito de outra forma, a aceitação da invasão poderia, talvez, provocar um nível de passivação, humilhação ou até de perda de valores a ponto de ser des-subjetivante. Lutar e resistir, neste contexto, seriam modos de evitar fraturas no Eu, como autopreservação, mesmo que às custas da autoconservação.

Proponho agora que pensemos em guerras ou invasões que causam tanta destruição e mortes que chegam quase a dizimar populações ou parcelas significativas destas. Nestas situações, o que é possível sobreviver de aspectos identitários do Eu como povo ou nação? A gente não precisa ir para a Europa para fazer reflexões, basta que pensemos nas populações nativas brasileiras nos pouco mais de 500 anos desde a invasão portuguesa. Nós, como país, nascemos de uma apropriação indevida, somos todos filhos de uma invasão que provocou morte indiscriminada de nativos, impôs religião e cultura, ao mesmo tempo que aculturou lendas, mitos e línguas. Outro devaneio: adoraria que nossas crianças aprendessem lendas de povos nativos, antes mesmo de saberem sobre mitologia greco-romana nas escolas. E que entrassem em contato com pelo menos uma das famílias de línguas nativas, quem sabe o tupi em São Paulo? Alguém aqui sabe qualquer coisa da mitologia tupi-guarani, além do que foi assimilado e transmitido por Monteiro Lobato? Ailton Krenak nos lembra que essa violência não está no passado, que a luta de povos nativos por sobrevivência permanece. Há uma guerra aqui entre nós, diariamente, no país hoje, mas pouco falamos dela.

Voltemos para a guerra no país europeu. Penso que a invasão da Ucrânia tem mobilizado o mundo por alguns fatores, dentro os quais porque se trata de um país europeu – e aqui não apenas por ser um povo de pele clara, com cabelos loiros e olhos azuis, ou de sermos todos um tanto eurocentristas. Ainda que não possamos descartar tais aspectos, seria reducionismo colocarmos nestes termos. O que está acontecendo na Ucrânia assusta também pelo fato de a Europa ter sido palco de duas grandes guerras no século passado. O último sujeito que tentou dominar o mundo pela força provocou milhões de mortes, perdas incontáveis, sofrimento e uma verdadeira ruptura no mundo de então.

A invasão da Ucrânia, assim, parece de fato colocar uma nuvem de ameaça sobre o mundo que vivemos. Seja pelas pretensões que acreditamos imperialistas de Putin ou pela intensa reação à invasão - com sanções, fortalecimento da Otan, incremento em orçamentos militares dos países ou envio massivo de armamentos e recursos financeiros para a Ucrânia. Beira o ridículo escutarmos que as armas nucleares, se usadas, poderiam destruir o mundo 11 vezes. Como se precisasse de mais de uma vez! Fato é que essa guerra coloca em evidência um conflito que parecia superado, na medida que as duas maiores potencias militares da nossa querida Terra estão de lados opostos, em uma espécie de reedição da Guerra Fria. Ou talvez em uma reedição de um conflito ainda mais antigo: Ocidente x Oriente. Orientemo-nos: a gente não esperava que a passagem de bastão de uma superpotência para outra fosse sem conflito, esperava? A história nos ensina que períodos de transição costumam ser turbulentos. Será que essa invasão estaria neste contexto, daí também sua relevância?

Nesse sentido, o que está acontecendo na Ucrânia traz muito para pensarmos. Até que ponto vale a guerra? Vale a pena morrer por uma nação, por um povo, por uma ideia? Talvez valha, quando acreditamos que lutamos por algo que nos transcenda, por valores que nos são caros. O atual presidente ucraniano tem sido muito hábil em nos contagiar - como que nos enganchando por uma espécie de identificação parcial - sobre a relevância desta guerra, ao nos apontar justamente nesta direção. Davi usando seu bodoque de palavras nos faz lembrar que é preciso barrar qualquer Golias com pretensões imperialistas, antes que vejamos outro maluco querendo conquistar o mundo, como se fosse tabuleiro de War. Davi não era um menininho quando lutou com Golias. Era um rapazinho, quando muito, um adolescente.

Creio que esta invasão nos mobiliza também aí, pelo nosso desejo de superarmos os mais fortes e injustos, ou de sermos escutados pelos grandes. Somos todos tal como o pequeno Davi diante de um gigante, contagiados pela força das palavras de Zelensky, que são intensificadas por impactantes imagens de destruição, violência e desamparo da população. Zelensky não é só articulado, no sentido de alguém que organiza bem o pensamento, sua fala é passional, dela transbordam força e energia capazes de transmitir sua veracidade. E sua verdade é a de um Davi diante de um Golias. Talvez, afinal, essa força misteriosa, que agora nos contagia, seja como a nossa tão conhecida libido, nosso ganha pão. Tão forte que capaz de fazer com que o discurso de um estranho lá longe nos alcance e possa nos afetar.

É possível respirar fundo e enxergar sem tantas paixões? Mais que isso, deveríamos fazê-lo? Talvez devêssemos ao menos tentar, porque não temos ideia de que consequências os acontecimentos atuais – invasão e reações - podem causar. O que será de um mundo que se arma e militariza cada vez mais? Que fornece armas para toda sorte de pessoas na Ucrânia, tal como já vimos ocorrer em países do Oriente Médio? Sabemos, apenas, que os acontecimentos, quando pensados em termos de história da humanidade, costumam trazer consequências. Mas como fazê-lo?

Outros materiais consultados:

Bolognesi, L. (2019) Guerras do Brasil.doc. (Episódio 1 - As Guerras da Conquista). Disponível na Netflix.

https://dicionario.priberam.org/puto

https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/puto

https://jornal.usp.br/cultura/um-brasil-de-154-linguas/

Gisele Senne de Moraes é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes, doutoranda e mestre em psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP. 

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