Mariupol e a Verdade Incognoscível

Hoje o blog apresenta mais um texto sobre a situação na Ucrânia. O autor, Ivan Martins, psicanalista e jornalista, baseado nos últimos acontecimentos, nos fala da dificuldade em saber qual a verdade dos fatos relatados e propagandeados nesta guerra e, de modo mais amplo e geral, no mundo atual.

 

MARIUPOL E A VERDADE INCOGNOSCÍVEL

Você sabe o que está acontecendo em Mariupol? Eu não sei. Tenho tentado me informar em português, inglês e espanhol. Em busca de informação alternativa, descobri agências russas de notícias e sites americanos de militantes contra a guerra, mas, mesmo assim, não estou satisfeito. As notícias que recebo são frontalmente contraditórias entre si. Quem está mentindo? Quando? Não consigo saber.

Segundo a mídia americana (e todo o resto da imprensa deste lado do mundo), a cidade portuária de Mariupol, no Leste da Ucrânia, é um local em que mais de 200 mil civis estão cercados e sendo massacrados por bombardeios diários das tropas russas. Por semanas, quase não havia referência às forças militares ucranianas que defendem a cidade. Não fosse por um ou outro vídeo ocasional, em que surgiam soldados, pareceria que os combates estavam sendo travados entre os tanques da Rússia e os homens, mulheres e crianças encurralados em Mariupol. As pessoas, os civis, queriam fugir da cidade e da guerra, mas os russos não deixavam. É isso que diz a imprensa que a gente lê, escuta e vê todos os dias.

Na outra imprensa, a informação é outra.

As forças militares da Ucrânia correram para dentro da cidade de Mariupol para não serem massacradas, e estavam usando a população civil como escudo, dizem os russos e gente como o coronel aposentado do exército americano, Douglas McGregor, comentarista da FoxNews. Entre as forças ucranianas em Mariupol estão as milícias do Batalhão Azov, o grupo neonazista que foi incorporado à guarda nacional do país e tem seu quartel-general na cidade. Ontem, domingo, pela primeira vez que eu tenha lido, o jornal americano The New York Times reconheceu a presença do Batalhão Azov em Mariupol. Entrevistou o grupo e se referiu a eles como “líderes da defesa da cidade” (como os russos vinham dizendo há semanas), sem, no entanto, apresentá-los como neonazistas. Viraram apenas “far-right”, extrema direita. Esses fanáticos, segundo os russos e outras fontes ligadas a eles, estariam ativamente impedindo a população civil de sair da cidade, para que eles mesmos não fiquem expostos ao ataque direto dos russos. Segundo essa versão, o exército russo, apesar do bombardeio intenso, estaria usando “força moderada” em Mariupol, em nada comparável ao que americanos e os próprios russos usaram em lugares como Iraque e Síria. Nesses países de gente morena, os bombardeios são indiscriminados e as baixas civis se contam aos milhares, não às dezenas.

Vejam: são duas versões completamente contraditórias sobre o que se passa em Mariupol, e, apesar do treino de décadas como jornalista, não descobri uma forma segura de separar a propaganda da notícia. Quem está contando os fatos e quem os está deformando em benefício próprio?

Sim, há o caso da maternidade destruída, cujas imagens rodaram o mundo. Em 9 de março, caíram bombas sobre uma maternidade e hospital infantil em Mariupol. Os repórteres ucranianos da agência de notícias Associated Press (AP) – os únicos jornalistas que continuam despachando da cidade sitiada - estiveram no local, aparentemente logo depois das explosões, e filmaram e fotografaram duas grávidas feridas, uma delas gravemente. Dias depois, eles as localizaram. Uma delas, que havia dado à luz e estava bem, foi identificada, fotografada com seu bebê e deu entrevista. A outra, segundo os repórteres da AP, (segundo o médico que a atendeu, na verdade), teria morrido, assim como seu bebê. O cirurgião disse num vídeo que o marido e o pai da moça morta levaram o corpo dela antes que o hospital pudesse saber seu nome. A situação é esquisita, mas imagino que na confusão e no desespero da guerra coisas assim aconteçam.

É importante registrar que os russos e seus simpatizantes nas redes sociais trataram o episódio todo, desde o início, como “encenação”, “farsa” e “fakenews”, apesar das evidências. Os russos alegam que, dois dias antes do bombardeio, em sete de março, denunciaram no Conselho de Segurança da ONU que os neonazistas do Batalhão Azov haviam esvaziado um hospital maternidade e feito dele a sua base em Mariupol. Essa denúncia está documentada na ONU, eu a li. Mas os russos podem ter se enganado – ou sido propositalmente enganados - e a maternidade ter sido apenas parcialmente desativada. Ou continuava funcionando plenamente, com ou sem combatentes do Batalhão Azov no prédio, quando caíram as bombas. De qualquer forma, houve o ataque a um hospital que abrigava civis e pelo menos duas vidas inocentes se perderam: a grávida anônima e sua criança.

Agora, nos últimos dias, surgiu a história do teatro Drama, também em Mariupol. Seus porões abrigariam centenas ou mesmo um milhar de pessoas quando o prédio “foi atingido por bombas russas”. O The New York Times falava na sexta-feira, 18 de março, em “130 sobreviventes” retirados dos escombros. Não dizia o número de mortos. A fonte da informação do jornal são sempre “funcionários do governo ucraniano”. Baseado neles, o NYT diz que “centenas de pessoas que estavam se abrigando lá continuam desaparecidas”. Eu não encontrei, como no caso da maternidade, nenhuma fonte jornalística fidedigna que tivesse presenciado a situação. Não quer dizer que essas fontes não existam.

Nas redes sociais, o governo russo, jornalistas da mídia não corporativa e simpatizantes anglo-saxões da causa russa – eles existem - sustentam que a explosão do teatro foi obra do próprio Batalhão Azov. Dizem que os moradores de Mariupol estavam contando há três dias, “nas redes sociais”, que os neonazistas forçavam gente para dentro do teatro. Os russos sustentam que não dispararam contra o teatro, que tudo foi uma farsa, que o próprio governo ucraniano admite que não morreu ninguém no prédio. Nas atuais circunstâncias, é impossível corroborar ou desmentir essas afirmações.

Resumo: eu não sei em quem acreditar, e isso é fonte de terrível angústia. O mundo é incerto e somos obrigados a conviver com dúvidas insolúveis, a isso estamos acostumados como psicanalistas. É parte do nosso trabalho sustentar junto aos pacientes a angústia subjetiva de não saber. Mas, no mundo social, costumava ser possível separar claramente a verdade da mentira em temas essenciais de interesse público. Julgar e tomar posição política com base em informação confiável era parte rotineira da nossa vida como cidadãos. Mas isso se torna cada diz mais difícil. Nesta guerra, a propaganda dos dois lados se espalha como névoa e torna tudo essencialmente indiscernível. Os sistemas de verificação coletivos da realidade desmoronam. Um véu de ideologia e interesse recobre os fatos, dando a eles um ar cambiante de irrealidade. As pessoas se agarram, narcisicamente, à sua própria versão dos acontecimentos. A mídia profissional parece recusar aspectos da guerra que não combinam com a sua narrativa. Fatos são trocados por uma versão emocionalmente gratificante do ocorrido. Abre-se diante de nós um Buraco de Alice no qual as referências se perdem e tudo fica de cabeça para baixo. Teríamos, como civilização, tocado o terreno movediço da psicose?

Não sei.

O pouco que eu sei é que os russos não deveriam ter invadido a Ucrânia, apesar de terem sido provocados de forma irresponsável pelo governo americano e seus aliados da Otan. A invasão afronta a lei internacional e constitui um crime contra os civis ucranianos. Para defender interesses geopolíticos, em nome de um nacionalismo ultraconservador e autoritário, Putin está matando, destruindo um país e exilando milhões de pessoas inocentes. Sei, também, que o governo americano não parece interessado em paz. Age para que a guerra continue, apesar dos custos humanos, desde que isso isole e agrida a economia Rússia. Os nazistas instalados no exército ucraniano tampouco querem paz, isso eu sei. A guerra é o território deles, a morte é o seu domínio. Se o presidente ucraniano tentar fazer a paz com os russos de forma independente dos americanos e dos nazistas, coisas ruins podem acontecer. Imperialistas não brincam em serviço quando se trata de preservar interesses estratégicos.

Isso é o que eu sei, e não é muita coisa.

Mas seguirei tentando me informar sobre Mariupol. É inquietante viver num mundo em que um pedaço importante da realidade parece incognoscível, embora se desenrole debaixo dos nossos narizes globalizados. Me recuso a substituir o conhecimento por um salto de fé. Tampouco vou dar crédito automático a americanos ou russos por afinidade ideológica. Seria imoral. Imperialismos de qualquer bandeira são execráveis. Pergunte às suas vítimas. Minha solidariedade está com o povo ucraniano que sofre, sangra e morre. Ele não merecia ser atacado como foi - e não merece ser usado como peça sangrenta de propaganda por quem deseja que a guerra continue até o último inocente.

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Ivan Martins é psicanalista, jornalista, ex-aluno do curso de Psicopatologias Contemporâneas do Departamento de Psicanálise do Sedes e autor dos livros “Alguém especial” e “Um amor depois do outro”.

ivanhmartins@uol.com.br

Comentários

  1. Salve Ivan, concordo plenamente com seu cuidadoso olhar para os acontecimentos!Estive escrevendo nesta direção. Compartilho um trecho como comentário:

    Neste preciso momento de Guerra Fria 2.0 - várias guerras em andamento: econômica, ideológica, psicológica, guerra de informação -, a intervenção militar da Russia na Ucrânia configura-se como o teatro macabro de uma maior aproximação do mundo com os “tempos do fim” e deixa à mostra as reais disputas em jogo. Aqui não temos bandidos contra mocinhos, mas apenas bandidos, com exceção obviamente de todo o conjunto dos humanos sob bombardeios, mortes e devastações. O que está em jogo é uma disputa de poder pelo domínio do mundo. No limite, temos Biden e Putin, cada um com seus apaniguados, armando-se para os próximos rounds – uma guerra mais extensa - e colocando o planeta em uma situação de confronto nuclear. Nos últimos anos, Russia e China estiveram se aproximando demais, num movimento de reconfiguração do mundo em termos geopolíticos e ameaçando o poderio econômico-político-militar e unilateral dos EUA. Tal situação põem em cena variáveis complexas em presença das quais qualquer tomada de posição por um dos lados destes jogadores seria um tremendo equívoco ou ingenuidade. Nada justifica uma guerra seja ela aberta tipo “shotting wall”, com bombardeios diretos, seja velada com todo tipo de ferramentas indiretas de destruição, comandada por qualquer tipo de tirano, para a submissão de povos ou da maioria da população mundial.

    Mundialmente, as grandes potências estão tendo que se haver com a transição energética – o planeta terra explodirá com o aumento das temperaturas – e a corrida é para ver quem chega primeiro nas tecnologias inovadoras. Quem vai dar as cartas tecnológicas nesta transição energética que está por vir? China, EUA, Russia? Esta é uma das vertentes da competição. A outra, é a corrida da China, Russia e outros países da Eurásia rumo ao estabelecimento do novo sistema financeiro monetário, a nova arquitetura econômica mundial. Ou seja, fim do dólar como padrão das trocas comerciais no mundo. Com as sanções econômicas impostas à Russia, "os Estados Unidos hoje são os principais adversários do dólar". "Estamos num mundo multicêntrico, queiram os Estados Unidos ou não" (Paulo Nogueira Batista, 2022). O que estava previsto para acontecer algumas décadas à frente precipitou-se.

    Isso tudo nos deixa claro quão complexo é o momento e quão delicado seria cair, por exemplo, na ingenuidade de endossar um Zelensky herói !


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