Vidas Paralelas

Maria Laurinda R. Souza, colunista do Blog,  escreve sobre o filme  "Mães Paralelas", de Pedro Almodóvar, e sobre outras histórias e tragédias que não devemos calar. 

 

VIDAS PARALELAS

M. Laurinda R. Sousa

Fevereiro/2022

Paralelas são retas que não se encontram, mas que,

necessariamente, tem o mesmo sentido.

“Não há história muda. Por mais que a queimem, por mais que a rasguem, por mais que a mintam, a história humana se nega a calar a boca” (p.186). Com essa afirmação retirada do livro de Eduardo Galeano De pernas pro ar (2011), no capítulo “A impunidade dos caçadores de gente”, Pedro Almodóvar encerra seu filme Madres paralelas.

Em seu enredo, esse diretor tão criativo e transgressor (não é gratuito que sua produtora se denomine El Deseo), nos apresenta várias facetas paralelas: A história pessoal de seus personagens, com seus amores e desencontros. A história de seu país com o que restou de verdade a ser dita e reencontrada. A história de uma geração que sofre pelas marcas dessa violência não reconhecida; sem direito de encontrar os corpos dos familiares assassinados e realizar o ritual do enterro e despedida. A história de uma outra geração que desconhecendo o horror do que foi vivido se vê ameaçada por uma repetição alienante. 

Mas, ao contrário das retas paralelas que não se encontram, essas histórias se cruzam; se tornam convergentes e fazem com que o até então oculto, ganhe tal intensidade que seja impossível conviver com os efeitos do “não querer saber”.

Saí do cinema com uma pergunta inquietante: Como dar a conhecer o que foi vivido? Como não repetir o silêncio do Estado e deixar no mutismo os riscos dos regimes totalitários?

No filme, as cenas vividas no pequeno povoado, com os peritos forenses escavando as fossas onde foram jogados os corpos, (depois de uma longa batalha para que isso pudesse acontecer), fazem ecoar, em nós brasileiros, cenas de uma outra história paralela. Vejamos:

Década de 30. Guerra civil espanhola (1936-1939). Uma forte disputa entre os republicanos e os nacionalistas. Os primeiros alinhados com a esquerda e o comunismo; os segundos, vinculados ao movimento das Falanges e alinhados com o nazifacismo. O líder desse grupo, general Francisco Franco, apoiado internamente pela Igreja, Exército e grandes proprietários rurais e, externamente, por Hitler e Mussolini, assume o governo e declara o fim do combate com a perseguição aos republicanos que ou fogem do país, ou são encarcerados e mortos. O resultado desse longo combate é conhecido: um milhão de mortos e mais de 100.000 desaparecidos.   Um dos registros mais conhecidos da destruição provocada por essa Guerra ocorreu em 1937, um ano depois de seu início: o bombardeio de Guernica, transformada num campo de testes pela nova força aérea alemã.  Em poucas horas, a cidade e seus habitantes ficaram totalmente dizimados. Dizem que quando um oficial alemão perguntou a Picasso se ele era o autor da tela pintada logo após o massacre, ele lhe respondeu: “Não, é o senhor”.

Décadas de 60-70-80.  Ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Teve início com o ataque e deposição do governo de João Goulart, democraticamente eleito. O golpe teve apoio da Igreja, do Exército, de industriais, da imprensa oficial, dos senhores da terra. O resultado do regime que autorizava perseguições, torturas e assassinatos também é conhecido: 457 mortos e desaparecidos.  Genocídio da população indígena (mais de 8.300 mortes). Instituições democráticas fechadas. Controle das informações, censura às manifestações culturais, à Educação, às reuniões de trabalho. Intervenção nos sindicatos. Cassação e exílio dos opositores do regime. A Comissão Nacional da Verdade, criada oficialmente em 2012, registrou mais de 50.000 prisões no primeiro ano da Ditadura.

Setembro de 1990. Revelação de um cemitério clandestino, em Perus, com 1.049 sacos de pessoas enterradas, numa vala comum, durante a ditadura civil-militar. Trabalho cuidadoso dos peritos forenses para retirar as ossadas e proceder à identificação dos corpos. Movimentos de idas e vindas para tentar sustentar esse trabalho. Resistências e falta de verbas.

Instante de convergência entre a cena do filme e a realidade que vivi neste país e que me instigou a partilhar este escrito.

26.2.2020. Primeiro caso notificado da COVID no Brasil. Hoje, 11 de fevereiro de 2022, temos 638.124 mortes. Efeitos da pandemia e da perversidade do sistema de governo que se instalou em nosso país.

Em paralelo a essa tragédia, acompanhamos outras tantas em nosso cotidiano: Dizimação das florestas e do cerrado. Rios e vales transformados em lama por ação criminosa das mineradoras. Aumento da população de rua e da fome. Ataques constantes ao que surge como diversidade. Racismo. Xenofobia. Abusos de poder. Precarização do trabalho e da vida.

Com a dor de tudo que vivemos durante os anos da ditadura.  Com os restos de um totalitarismo que não se extingue e que se viram reanimados após as eleições de 2018, saberemos responder, como o pintor espanhol, à pergunta sobre a responsabilidade autoral de tais atrocidades?

Os movimentos nas ruas, as organizações em defesa dos Direitos Humanos, as Clínicas do Testemunho, as manifestações artísticas, os psicanalistas pela democracia e outros tantos grupos preocupados com os rumos de nossa história, têm enunciado as respostas. Precisamos aumentar o som dessas vozes.

Termino com o final da frase de Galeano, com que iniciei este texto: “A história se repete?...O direito de lembrar não figura entre os direitos humanos consagrados pelas Nações Unidas, mas hoje, mais do que nunca, é necessário reivindicá-lo e pô-lo em prática... Quando está realmente viva, a memória não contempla a história, mas convida a fazê-la”. (grifo meu).

M. Laurinda R. Sousa é psicanalista e escritora. É membro do Departamento de psicanálise, e colunista do Blog do Departamento.

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