Texto - Thiago Majolo

Para nossas próximas publicações, pedimos a nossos colunistas que pudessem escrever a partir deste futuro, pós-bolsonaro e pós-pandemia. Thiago Majolo preferiu examinar com lentes mais acuradas, a possibilidade desta empreitada, consultando sua própria escuta, atravessada pelo consultório e pelas ruas. Seu texto nos toca, a todos. Confiram:

 

O convite que me chegou deste blog para escrever sobre o Brasil pós-Bolsonaro me fez pensar mais sobre a natureza do convite em si do que sobre o tema. Perguntei-me, e dirigi a pergunta a quem me convidou: “O que exatamente sobre esse tema?”. A resposta foi: “O tema está amplo de propósito”. De chofre, uma voz interior me questionou: “mas será mesmo um convite aberto da forma que está colocado?” E foi isso que me convocou a aceitar o convite.

Essa pergunta direcionou meus pensamentos e me parece fundamental, pois ainda que eu acredite que o convite tenha realmente vindo com uma genuína intenção de abertura, propondo-me que refletisse sobre nossos tempos atuais, ao colocar a referência “pós-Bolsonaro”, deixa sugerido que o texto precisaria versar sobre as permanências e ecos da gestão anterior. O que me incomoda nisso é imaginar que esse infeliz personagem definiu uma linha, um marco, uma referência histórica da qual não conseguimos mais nos furtar. E é justo que assim façamos, para que não esqueçamos.

Em paralelo, porém, tenho uma vaga sensação de que há um grande perigo de que o atual governo e seus apoiadores – eu, incluso -, tenham se acostumado a atuar como oposição e não mais como situação, sempre referenciados a um outro, um inimigo comum. Atuando assim, em combate a um bloco maciço no qual incluímos tudo e todos que eventualmente possam ter tido contato com o “inimigo”, vamos gastando tempo de ações propositivas e reforçando um dualismo formado por identificações primárias, de impossível articulação entre o que definimos por “nós” e o que repelimos dentro do “eles”.

É claro que as gigantes calamidades sociais que vêm nos atingido, em grande parte ecos da tal gestão anterior, possuem uma voz de eloquência impossível de ignorar, que pedem lamento, revolta, justiça, reparação. Mas penso no meu lugar de psicanalista que escreve a um blog de um departamento de psicanálise e me pergunto se seria produtivo apenas repetir o que o noticiário ou especialistas mais gabaritados que eu em política e sociedades estão refletindo. Posso então apenas assumir um lugar de onde falo, que é por detrás de lentes psicanalíticas.  

E o que me parece fundamental relatar é uma “percepção diagnóstica”, por assim dizer, de patologias do e no social brasileiro. Ou, mais modestamente, nos meios em que círculo. Minha escuta clínica circula por muitos mundos subjetivos dentro do consultório, mas eu tenho também por hábito conversar com quase toda e qualquer pessoa com quem posso nas ruas, cafés, táxis, feiras, padarias etc. E o que tenho ouvido desde antes da eleição é uma crescente paranoia. Nós, pós-modernos, dotados de câmeras e informações, já costumamos estar imersos em uma dimensão paranoica, com frágeis Narcisos espalhados, espelhados, multiplicados por aí, em busca de si mesmos, em combate contra todo o Outro ou, melhor gramaticalmente falando, o Eles. O que o crescente extremismo nacional fez foi colocar uma segunda camada paranoica nesse terreno já bastante paranoide.

Ainda assim, o que tem me chamado atenção foi a amplitude que esse fenômeno tem tomado, seu grau exponencial de crescimento desmedido. E, em algum ponto de virada, isso tomou contornos (ou falta de contornos) novos. Primeiro, eu ouvia de ambos os lados as manifestações de ódio, desprezo, triunfo (defesas que Melaine Klein conheceu bem) de um lado e de outro, com ou sem razão. Mas ainda assim estávamos dentro do campo neurótico, modulados pelo prazer-desprazer, pelo amor, não-amor, ódio, sadismos, masoquismos etc. A partir de um ponto de virada que não posso precisar quando foi, passei a ouvir a seguinte frase “Eu não a(o) reconheço mais”. Essa angústia quase que invariavelmente vinha de alguém do campo progressista relatando a experiência de súbito desamparo que seu afeto fora deixado na relação com algum parente querido, que assumira de vez o discurso bolsonarista.

“O que está acontecendo?”, pensei. Não era uma queixa vazia, uma reclamação hiperbólica que chegava até mim. Era uma constatação: as pessoas estavam me dizendo que não eram mais capazes de alcançar empaticamente o Outro no outro. Se a Biologia define empatia apenas como a capacidade de se colocar no lugar do outro, a psicanálise, desde que Freud escreveu Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), entende de forma mais complexa esse conceito: empatia seria a possibilidade de reconhecer no outro o estranho, saber que o outro me permite entrar em contato e conhecer um estranho que, por força do recalque, não consigo aprender em mim.  O que estava acontecendo, portanto, era que não conseguíamos mais alcançar empaticamente aqueles tomados pelo discurso bolsonarista. Isso é um problema grave de tantas formas que nem conseguiria enumerar todas.

É grave, em primeira instância, porque possivelmente nosso psiquismo está denunciando que esse discurso antes apenas paranoico estava, e está, progredindo para uma demolição dos sujeitos tomados por ele. Aquilo que estamos chamando vulgarmente de delírio coletivo carrega junto uma objetificação dos sujeitos que são, então, assujeitados por uma narrativa ilusória, vazia de conteúdo, completamente alienante. Quando tento acompanhar o raciocínio de alguém tomado por esse discurso e me aproximar de seus afetos, o que antes me causava ódio, asco, revolta, atualmente me gera apenas incompreensão, vazio, confusão, despropósito. E então, quase sem perceber, me afasto o quanto antes.

E esse é um segundo problema: me afastar. Fico me perguntando como erotizar um corpo simbólico que foi objetificado, que perdeu toda sua dimensão de sujeito. Não encontro resposta. A incompreensão gera afastamento, descaso e apatia e desmobiliza qualquer possibilidade de ação. Como, por exemplo, resistir quando parece que não sabemos nem por onde e de que forma somos atacados? A narrativa objetificante desmobiliza não somente aqueles por ela diretamente afetados, mas seu entorno. Quando percebemos, já estamos imersos.

A minha pergunta inicial que nasceu a partir do convite deste blog (será que estamos mesmo abertos a refletir amplamente) encontra então uma resposta contundente: não! Até quando?

Thiago Majolo é psicanalista, mestre em História Social pela USP e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Comentários

  1. Thiago: ótima questão. Gostei. Eva

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  2. Que beleza de texto. Parabéns, Thiago! Ideias inquietantes - pertinentes- expostas com muita eloquência.

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