A Vingança do Eu
Em
tom envolvente, nosso colega Daniel Modós compartilha reflexões
sobre o Eu na pós-modernidade a partir de personagens literários do século
passado.
A
VINGANÇA DO EU
Foi
acompanhando de perto os devaneios existenciais de Antoine Roquetin em A
Náusea de Sartre que, de repente, o déjà vu me acertou: já li este
livro antes. A solidão, a estranheza, o descolamento radical de qualquer
sentido compartilhado não eram só análogos ao Estrangeiro de Camus (o
que faria todo sentido, afinal os dois filósofos eram amigos e com toda certeza
discutiram o absurdo da existência em tardes esfumaçadas por cigarros e regadas
a café). Não, meu dejá vu não era fruto de uma comparação singular entre
dois existencialistas, tive a sensação de que já tinha lido A Náusea
muitas outras vezes antes. O personagem Antoine Roquetin, o homem branco,
culto, que vive de rendas e flana pela Europa elucubrando sobre o fim de todo
sentido é o personagem de Sartre, mas é também o personagem central da Amarelinha
de Cortazar, é também o "herói" decepcionante da obra prima de Aldous
Huxley, Sem Olhos em Gaza, e podemos encontrar fortes ecos do mesmo
personagem no Homem Sem Qualidades de Musil, ou, ainda, nas precursoras Memórias
do Subsolo de Dostoievski. Essa personagem repetida, a figura do homem
inteligente, culto e desapegado, que se sente e se crê realmente descolado do
restante da humanidade, não é um simples reflexo dos autores que escreveram
estes livros, embora certamente seja isto também. É mais do que isso: a
personagem do desterro, da estrangeiridade em sua própria vida é, nada mais,
nada menos, do que o exemplo do sujeito moderno no ápice da modernidade. Esse
personagem se repete, pois é uma consciência moderna modelo, que só poderia
mesmo concretizar-se com radicalidade na literatura: o sujeito que vê a si
mesmo como “neutro”, pois é homem, branco, despreocupado com dinheiro,
desengajado de lutas sociais, ou estigmas sociais, recebendo por seus
privilégios o passe livre para poder se sentir um “nada”, embora isto o condene
a uma profunda solidão.
Uma
multidão de indivíduos, uma Multidão Solitária diz a feliz expressão do
sociólogo David Reisman. Eu por mim, self made man. Eis o sujeito
moderno levado a sua radicalidade: liberdade, mas sem igualdade. De
fraternidade, então? Nem se fala. Na Modernidade, por meio da lente fria da
razão, as ilusões e tradições que organizavam o mundo foram dissipadas,
restando esse mundo estranho, nauseante, absolutamente estrangeiro, porque
despido de qualquer sentido. Primeiro, o frio bisturi da razão dissecou as
ilusões pré-modernas que povoavam o mundo de sentidos tradicionais cristãos, e
fez a mesma coisa, aos poucos, com os ideais burgueses iluministas. De um mundo
pré-moderno encantado e assustador, pois misterioso, sobrou o mundo do cálculo,
da luz branca insossa de um quarto de hospital ou de um laboratório de química
- a Era da Técnica venceu, diria Heidegger. Mas a as luzes implacáveis da Razão
não pararam por aí, não poderiam... Desde o gesto fundante de Descartes é da
natureza da razão moderna explicar sempre mais, e duvidar sempre mais. A Razão
voltou seus dentes contra si mesma, dissecou a si mesma e devorou a si mesma
num movimento de suspeita que Ricoeur credita à Freud, Nietzsche e Marx. A
razão então aplica-se a explicar a razão, a cobra morde a própria cauda e nesta
auto-deglutição destrutiva o mundo desiste do sentido. Num primeiro momento, sob
a luz demasiadamente fria da razão as ilusões e tradições que organizavam o
mundo foram dissipadas, e, no segundo momento, quando a razão se expande tanto
que ela mesma está sob escrutínio e já não pode fiar a si, resta este mundo
estranho, nauseante, absolutamente estrangeiro em que o sujeito moderno se
encontra lançado.
Os
personagens desses autores sentem esta náusea e se apercebem do paradoxo de uma
razão moderna que questiona continuamente a si mesma (o “paradoxista” diz
Dostoievski de seu personagem), mas eles não podem sair do ciclo ourobórico dos
questionamentos contínuos pela simples razão que, além de não confiarem na
razão (de usarem a razão contra a razão), também não confiam em si mesmos como
existências consistentes, questionam o próprio questionamento tanto quanto
questionam a si mesmos. Sim, no limite da razão que de tudo suspeita, o próprio
eu moderno cai por terra, já que o tal cogito, “Penso, logo existo”,
vira um questionamento: “Parece que penso, mas será que penso mesmo?”. Nem
mesmo o eu do cogito se sustenta quando a razão é levada ao extremo de
questionar a si própria como fundamento. A experiencia de estranheza total
destas personagens, vem acompanhada mesmo de uma estranheza quanto a si, um
distanciamento ou desarranjo contínuo na experiência de ser um eu com uma
continuidade mais ou menos estruturada no tempo. Falam de vestir máscaras, de
ser um nada, de não ter qualidades próprias para mostrar. Além disso, relatam
experiências quase ou já psicóticas, de desmoronamento do mundo,
interpenetração da causalidade, junto com esse desnorteamento total ou parcial
do eu. A personagem central de Amarelinha lança-se mesmo na psicose, e a
personagem de Camus em O Estrangeiro, talvez tenha sido um sujeito
psicótico desde o início. Lacan já avisara no Seminário 3 que o discurso
moderno da autonomia total de tudo e todos é análogo a um delírio, mas na
literatura encontramos como isso pode se concretizar numa experiência de
crepúsculo do saber, que é um desmoronamento do sentido compreensível da
existência e de nosso lugar nela.
O
eu moderno, porém, não é fácil de derrubar. Toda vez que questiona, mesmo
quando questiona a si mesmo, se desmonta por um lado, mas por outro lado se
reafirma. O que a psicanálise ensina é que o eu sempre se satisfaz, mesmo
quando sua satisfação é o próprio esgarçamento – afinal, quem vai questionar o eu
se não o eu? Em toda questão o horror da dúvida é acompanhado do prazer da
reordenação, e questões sobre si mesmo certamente seguem a mesma lógica. Se não
fosse assim ninguém aguentaria ir para a análise: toda desconstrução é
acompanhada de reconstrução, o eu sempre se refaz e sempre se satisfaz, mesmo
quando desconstrói a si mesmo. É a vingança do eu – ou a vingança do
narcisismo, se preferirem. De fato, não é louco quem quer. Na neurose o eu se
questiona só para se reconstituir, ou melhor, questiona já se reconstituindo, é
o registro do imaginário trabalhando para que haja eu e outro, para que haja
também algum sentido provisório mesmo na falta de um sentido absoluto. Às vezes
não é preciso muito. Serve até mesmo um eu fluido ou um sentido fluido num
mundo pós-moderno que parou de oferecer sentidos sólidos, mas mesmo aí o eu se
satisfaz buscando se destacar como ser visível na Sociedade do Espetáculo.
A pós-modernidade, caracterizada pela queda das grandes metanarrativas que
ainda davam algum sentido histórico ao
mundo moderno, chega com a destruição do muro de Berlim e com o fim da disputa
ideológica entre comunismo e capitalismo. Esse acontecimento e a sensação de
“fim da história” que ele causou certamente golpeou ainda mais o já precário
sentido histórico de progresso que sustentava o eu moderno, deixando no seu rastro
um sujeito que se viu ainda mais entregue à náusea e ao desamparo... Mas, como
sempre, o eu se vinga. Se não se reafirma mais hoje pela crítica racional, o eu
se reafirma pela cena pública do espetáculo. Em que pese a crise do sujeito no
final do século passado e no começo deste, o sujeito e seu eu não foram a lugar
nenhum, e provavelmente não vão se esvair tão cedo. Frente a radicalização da
razão moderna, e ao desmoronamento pós-moderno, o eu pode até cambalear, mas
sempre busca retornar e se satisfazer... O eu sempre se vinga.
Daniel
Modós é psicólogo (PUC-SP) e integrante do grupo de
trabalho e pesquisa Psicanálise e Contemporaneidade.
Comentários
Postar um comentário